Posso sugerir-lhe este vinho em vez do que escolheu?

Um bom escanção tem a arte de nos levar a beber um vinho que nem sabíamos que existia e de nos abrir portas para mundos que nos surpreendem. Fomos falar com seis jovens sommeliers portugueses para perceber se há uma nova forma de falar sobre vinho – e de o beber.

Foto
Gabriela Marques, sommelier do Varanda, Ritz Four Seasons dr

Gabriela Marques
Varanda, Ritz Four Seasons

Já ganhou o prémio de Melhor Sommelier da Academia Internacional de Gastronomia e o de Melhor Carta e Serviço de Vinhos da Revista de Vinhos. Gabriela Marques é sommelier no restaurante do Hotel Ritz Four Seasons (com o chef Pascal Meynard) desde há dois anos e só lamenta uma coisa: “Falta-me tempo para andar na estrada." Quer dizer, para ir às quintas e conhecer de perto o trabalho dos produtores cujos vinhos serve às mesas do Varanda.

Entende o seu trabalho como sendo “parte confortável” da experiência de uma refeição, alguém em quem podemos confiar, pedir uma sugestão. “Há uns anos, era habitual o sommelier só ir à mesa quando era chamado”. Hoje as coisas são diferentes e cada vez mais o papel destes especialistas em vinhos é melhor entendido.

Nesse papel há muito de psicologia. “O que mais me entusiasma é conseguir ler o que o cliente gosta e quer. Não adianta nada termos todo o conhecimento do mundo se depois não entendemos as pessoas. Se não criarmos empatia com elas é difícil sermos os melhores, somos apenas técnicos”, afirma.

Foto
Gabriela Marques dr

Este maior protagonismo de que gozam os escanções dá-lhes também espaço para personalizarem o seu trabalho. “Os copos que temos, a forma como servimos o vinho, a temperatura, o tipo de prato com que harmonizamos cada vinho, tudo isso diz muito acerca de um sommelier, se é mais clássico, menos clássico, se está atento ou não às tendências do mercado.”

Gabriela passou pelo Feitoria, no Altis Belém, e pelo LAB by Sergi Arola, no Penha Longa, em Sintra, antes de chegar ao Ritz, onde se tem empenhado em trabalhar uma carta que anteriormente tinha “um perfil muito clássico”, passando a apresentar mais produtores pequenos e aumentando o número de referências internacionais. “A ideia foi abrir-nos um bocado ao mundo.” Assim, para além dos obrigatórios vinhos franceses, com muitas referências de Bordéus e da Borgonha, incluiu mais da África do Sul, Argentina, Chile, “muito brevemente” do Líbano, e mais para a frente de alguns países do Leste da Europa, como a Geórgia, por exemplo.

Thomas Domingues
Cave 23

Há uma (na verdade mais do que uma, mas comecemos por aqui) originalidade na forma como Thomas Domingues apresenta as 230 referências que tem na Cave 23, em Lisboa, onde trabalha com o chef Bernardo Agrela: todos os vinhos podem ser pedidos a copo.

Há dois anos que está na Cave 23, depois de um percurso em que passou pelo Vila Joya, no Algarve (onde se apaixonou pelos vinhos, sob a orientação do escanção Arnaud Vallet) e pelo Belcanto. Andou dois meses a conhecer vinhos e produtores na Borgonha, trabalhou no Astrance de Pascal Barbot, depois no Per Se, em Nova Iorque, e por fim no Claro!, de Vítor Claro.

“Sempre gastei o meu dinheiro todo a comer e beber. Como cliente também se aprende bastante”, sublinha. Conhece, portanto, a frustração de querer provar um vinho especial mas não ter 800 euros para dar por uma garrafa, daí que defenda a importância de servir qualquer vinho a copo, independentemente do preço.

Foto
Thomas Domingues dr

Para garantir que não estraga uma garrafa de milhares de euros, usa um sistema, o Coravin, que, através de uma agulha, permite retirar a quantidade de vinho que se quiser, substituindo-o por um gás que garante que o restante líquido não se irá deteriorar. Mas a abertura de uma garrafa cara provoca sempre uma certa adrenalina pelo desafio que representa tentar vender os restantes quatro copos. “Se vender três copos dos cinco que a garrafa dá, já a tenho paga e posso colocar os outros dois num pairing”, explica.

No Cave 23, prossegue Thomas, “temos um pairing que muda todos os dias, em função do menu, que também muda, e do cliente que temos à frente”. Por isso é importante haver um grande número de referências, mas com algumas preocupações na forma como são seleccionadas: assume a sua preferência por vinhos naturais e biológicos, e por trabalhar com produtores pequenos, que conhece pessoalmente (esta é uma carta particularmente personalizada, basta ver que do Alentejo só tem vinhos da região de Portalegre). Preocupa-o, acima de tudo, a questão do “respeito pela natureza” – “e não acredito em respeito pela natureza quando se faz um milhão de garrafas”.

Ivo Peralta
Epur

Foi medalha de ouro no Concurso Nacional de Escanções e, em 2019, vai participar no campeonato internacional Best Sommelier of the World. Ivo Peralta, sommelier no Epur, o restaurante do chef Vincent Farges, em Lisboa, tem 27 anos e começou a trabalhar aos 15 no restaurante dos pais na Aldeia do Meco. Era também muito jovem quando se iniciou a provar vinhos, e recorda-se de, numa das primeiras vezes, ter dito que um deles tinha notas de canela – “o que naquela altura pareceu completamente disparatado”.

Foto
Ivo Peralta Miguel Manso

Na construção da carta de vinhos do Epur, com perto de 125 referências (todas nacionais, respeitando a filosofia do restaurante), preocupou-se em dar destaque a quem produz cada um deles. “Primeiro aparece o nome do produtor e depois o do vinho. Normalmente a pessoa que o faz fica um pouco esquecida.” Mas se há muito do seu gosto pessoal, é fundamental não esquecer a gastronomia que está a trabalhar, neste caso a de Vincent Farges, em que as técnicas da alta cozinha francesa estão ao serviço dos melhores ingredientes portugueses.

Daí que seja uma carta de equilíbrios, entre grandes e pequenos produtores, referências mais clássicas e outras menos convencionais. Para ajudar o cliente na escolha, a arrumação dos vinhos é feita por estilos, dos brancos mais frescos e aromáticos aos tintos com maior peso, estrutura e intensidade.

Uma parte muito importante do seu trabalho é feita na cozinha, com Vincent Farges. “Temos que estar a conversar constantemente com o chef, até porque começa a ser normal os clientes trazerem a sua própria garrafa e pedirem-nos para harmonizarmos aquele vinho com a comida.”

Para além do trabalho no Epur, tem concentrado as energias em preparar-se para o Best Sommelier of the World, o que implica um “grande investimento” em vinhos mas também em livros, já que “não é possível provar vinhos de todo o mundo”. Uma grande ajuda vem dos outros escanções. “Encontramo-nos várias vezes para jantar, cada um leva uma garrafa, fazemos provas cegas. Somos muito unidos.”

Mário Marques
Ceia

Mário Marques tinha 34 anos quando deu uma volta à sua vida. Depois de ter trabalhado dez anos como consultor financeiro, decidiu “dar um passo para o lado e seguir uma paixão”: o vinho. Um dia, viu que o chef Pedro Pena Bastos tinha publicado um post dizendo que estava à procura de alguém para trabalhar no seu novo projecto, o Ceia, em Lisboa.

Mário respondeu com toda a sinceridade: “Disse que percebia minimamente de vinhos [tem o nível 2 do Wine & Spirit Education Trust e muitos anos de provas cegas só pelo gosto de aprender] e zero experiência de sala.” Podia parecer um currículo pouco impressionante, mas o facto é que Pedro achou que poderiam trabalhar bem juntos e hoje é Mário quem, ao lado de Alexandre, nos recebe, escolhe e apresenta os vinhos durante um jantar no Ceia – restaurante que tem a particularidade de ter apenas uma mesa na qual se podem sentar 14 pessoas.

Mário não sabe se se adaptaria num restaurante grande onde “andasse a correr de mesa para mesa, a recolher pedidos”, mas no Ceia o desafio é outro – cada noite o grupo que se forma é diferente, as conversas seguem caminhos imprevisíveis e “não é possível ter um guião”. Mas é isso precisamente que lhe agrada.

Foto
Mário Marques Nuno Ferreira Santos

Não há carta de vinhos, quem aqui vem coloca-se nas mãos do chef e do sommelier no que diz respeito à comida e à bebida. Caso não queira o pairing de vinhos, pode optar por acompanhar a refeição com um único vinho. Mário está também a desenvolver, com Pedro, um conjunto de propostas para um pairing não alcoólico, com sumos e bebidas fermentadas.

Quanto à escolha de vinhos, o seu trabalho (o Ceia só está aberto há três meses) é o de “criar o contexto para que as pessoas se apaixonem por aquele momento”. Para isso, tal como acontece com os pratos, “os vinhos têm que ter carácter”. Até agora teve pouco tempo para ir às quintas, conhecer o trabalho no local, “pegar no solo, cheirá-lo, conversar com os produtores” e é essa a sua prioridade assim que tiver um momento livre.

Emília Craveiro
Loco

Foi uma vindima, no primeiro dia de aulas do curso de Gestão Hoteleira, Restauração e Bebidas em Coimbra, que convenceu Emília que o que queria mesmo fazer era algo ligado ao vinho. Nesse mesmo dia tomou a decisão de, assim que acabasse o curso, inscrever-se no de escanções.

Depois de passagens por vários restaurantes, Emília (que vem de uma família ligada à área, com a taberna/mercearia dos avós, perto de Coimbra, a transformar-se gradualmente num restaurante, já na geração dos pais) tornou-se, em Fevereiro de 2017, sommelier no Loco, de Alexandre Silva, em Lisboa.

O maior desafio do seu trabalho é, diz, o de perceber não só qual o vinho certo para o cliente que tem à frente, mas qual o vinho certo para o estado de espírito daquela pessoa naquele dia. Começa por fazer algumas perguntas sobre o tipo de vinho que preferem, as regiões do mundo, eventualmente as castas ou o perfil. Se o seu interlocutor tiver alguma dificuldade em responder, a solução é perguntar-lhe que tipo de bebidas, em geral, prefere.

“Certas pessoas dizem que gostam de um vinho frutado, mas o frutado pode ser mais doce ou menos”, explica. “Há uma camada mais jovem que consome muito refrigerantes e nesse caso preferem um vinho frutado mais doce. Mas se me disserem que gostam de café sem açúcar, já posso arriscar noutro tipo de vinho.”

Foto
Emília Craveiro Paulo Barata

Nos seus menus de harmonização, o Loco oferece a possibilidade de se optar por um pairing de vinhos ou por um de bebidas não alcoólicas. Emília não está directamente envolvida na primeira fase de criação dos sumos ou das infusões, mas entra em cena quando é preciso testar a harmonização com os pratos. “Aí tentamos encontrar o equilíbrio, provamos, não adicionamos açúcar nos nossos sumos, mas podemos concentrá-los um bocadinho.”

A harmonização com sumos acaba por ser mais fácil do que com vinhos, confessa. “Nunca me aconteceu um sumo destruir um prato.” Os vinhos são outro desafio. Na carta, que tem 180 referências organizadas por regiões e, dentro destas, cronologicamente, tem vindo a aumentar o espaço dedicado aos vinhos biológicos (dentro do que é a filosofia do Loco) e a regiões como a Bairrada, o Dão ou Lisboa.

Cláudio Santos
Tasca da Esquina

Quando um cliente se mostra menos aberto a experimentar algo de diferente, Cláudio não desanima. “Digo-lhe, não quer provar este só para ver se fica melhor? Agarro numa garrafa e vou lá servir, para ele ver o que eu queria dizer. Às vezes funciona.” Na Peixaria da Esquina, outro restaurante de Vítor Sobral onde trabalhou antes da Tasca da Esquina, já havia quem nem sequer pedisse a carta de vinhos e lhe pedisse para ser ele a sugerir.

Os turistas mostram-se geralmente mais disponíveis para a descoberta (até porque não conhecem muita coisa), mas os portugueses ainda pedem muito as referências mais conhecidas. Para ajudar à escolha, Cláudio organizou a carta de acordo com a lógica defendida pelo enólogo e crítico Aníbal Coutinho.

Foto
Claúdio Santos Miguel Manso

“A nossa carta está dividida por perfis de vinho”, descreve. “Há o perfil atlântico, com as regiões da costa, Vinhos Verdes, Bairrada, Lisboa e ainda as ilhas, Madeira e Açores, climas com mais vento, mais humidade. Depois temos as montanhas e vales, com Trás-os-Montes, Douro, Távora-Varosa, Dão, Beira Interior, que têm um clima continental extremo e solos de granito e xisto, o que lhes dá complexidade, taninos, acidez. E, por fim, um perfil do Sul, com a Península de Setúbal, o Alentejo, o Algarve, em que as vinhas têm mais horas de sol, maiores maturações, mais volume de álcool. Para mim, em 90% dos casos, esta divisão faz sentido.”

Tem alguns grandes produtores na carta, mas a maior parte são pequenos produtores, muitos deles desconhecidos para a maioria dos clientes. “As pessoas podem ficar perdidas, mas é interessante porque têm que recorrer a alguém. Se não, não faria sentido ter um sommelier.”

Tem, claro, algumas preferências pessoais. “Gosto dos vinhos do Dão, que têm estrutura e complexidade, e também da Beira Interior, em que se sente a mineralidade dos solos graníticos, a acidez das vinhas de altitude.” Esta é, aliás, a sua região – nasceu em Escalos de Cima, perto de Castelo Branco, onde chegou a abrir, com o irmão, um bar que na altura se revelou demasiado inovador para uma aldeia do interior.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários