Zero, mais ou menos

O zero é uma das maiores descobertas intelectuais da história e não apenas para a matemática.

O Orçamento do Estado para 2019 prevê um défice muito próximo do equilíbrio orçamental. Ou seja, de quase 0%. Trata-se de uma meta que, em democracia, jamais foi alcançada, o que é de saudar. Estamos perante um bom paradoxo. Isto é, perto de um zero no défice, mas um zero que vale muito. Não se trata sequer de um “zero à esquerda”, porque, neste caso, tem a companhia de uma vírgula à sua direita, o que lhe dá um sentido valorativo. Entre múltiplos factores que para isso contribuíram, está até essa estranha prática de, em empréstimos, poder haver juros abaixo de... zero.

Na passada terça-feira, aqui escrevi sobre o OE2019. Por certo haverá oportunidade para a ele voltar. Por agora, no meio da recorrente discussão em seu redor e enquanto assenta a respectiva poeira, optei por divagar sobre o zero, uma das maiores descobertas intelectuais da história e não apenas para a matemática.

Ainda que com aproximações em algumas civilizações anteriores, como a babilónica e a maia, e sobretudo a hindu, a chegada do zero ao Ocidente coincidiu, na Idade Média, com a expansão dos algarismos árabes. Antes, a avançada civilização romana nunca foi capaz de representar a ausência de quantidade numérica e a helénica considerava essa ideia não só anti-estética, como o factor gerador de caos e confusão num mundo organizado.

Representar o zero, quantificar o nada, tornar existente o inexistente, superar a casa vazia que significava o nada no ábaco, designar o número de elementos de um conjunto vazio, eis o desafio de pura abstracção que se colocou para uma grande invenção da humanidade.

Basta imaginar o que (não) seria o mundo sem o conceito e representação do zero, no domínio não apenas da matemática e ciências conexas, como da lógica, da filosofia, da ciência em geral, da astronomia, da computação, até das religiões.

Simbolicamente, o zero foi um passo de gigante para o homem, juntando-se a outras noções fundamentais da abstracção que são o infinito incontável e o infinito do contínuo.

Entre zero e um, qual o primeiro? O zero que nada é ou o um que é infinitamente maior do que o zero (1/0=∞)? E se não existisse o zero faria sentido o um?

Um avanço de grande insurreição lógica, pois trata-se de significar o nada que, afinal, existe. Sem darmos conta, o zero está enraizado, umas vezes positivamente, outras com conotação negativa, na nossa linguagem e pensamento. Falamos de “um zero à esquerda” como sinónimo de alguém que nada vale, insignificante, praticamente nulo, em oposição a um aparentemente inofensivo zero à direita que, porém, significa multiplicar por 10 um qualquer número, apesar de o zero só por si nada valer. Uma das excepções à regra é a do famoso agente secreto 007, em que os dois zeros à esquerda tornaram James Bond mais famoso do que simplesmente seria com um singelo 7. “Tolerância zero” é uma expressão relativamente recente sobretudo para designar, quase sempre, o império da lei face a uma qualquer transgressão. “Começar do zero” é outra frase com que se inicia qualquer coisa depois de se ter ficado “reduzido a zero”. Já “ano zero” traz geralmente associada a novidade ou a esperança. E “orçamento base zero” é, na linguagem financeira, muito proclamado, mas nunca efectivado. E que bom seria para os contribuintes que algumas despesas inúteis do Estado tivessem por base este tipo de orçamento, pois que aqui se aplicaria literalmente o paradoxo de que nem sempre o que parece ser de graça equivale a zero. Há contextos em que o zero é o último (e não o primeiro) algarismo que tudo detona, como é o caso do lançamento de foguetões espaciais. Já no desporto e, em particular, no futebol, se o resultado ficar 0-0 é, além de um insonso empate, um jogo de empatas. Para certos refrigerantes chegou-se finalmente à expressão zero. Primeiro envergonhada e parcialmente, com termos finos e ingleses, como diet ou light, agora através de um superlativo zero, o que não significa, porém, zero de açucares. Já na prova dos nove, há a ordem de “noves fora zero” numa aliança algo estranha para verificar a correcção de uma operação aritmética.

Há quem parta do zero para chegar a nada, assim parecendo ninguém, palavra esta que é uma espécie de zero relativo a pessoas. Mas atenção, há cada vez mais “zeros à esquerda” que convivem muito bem com a ideia de se acharem no direito de ter muitos “zeros à direita”.

Termino com um verbo sem verba e em forma de um neologismo abrasileirado: zerar. Estamos perto de zerar as contas anuais do Estado, ainda que zerando, sem apelo nem agravo, muitos contribuintes e aforradores, sobretudo aqueles que estando quase a zerar as suas contas bancárias vêem penhorados os zeros à direita de qualquer insignificante número, ao contrário de grandes e relapsos devedores que, estes, nunca zeram. E, voltando ao Estado, é bom ter em conta que um zero ou quase zero no Orçamento está longe de zerar a dívida pública para a qual os contribuintes futuros, tendo de a pagar, correm o risco de zerar.

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