O problema sexual da Relação do Porto

A Relação do Porto não se dá bem com o sexo, e seria útil que uma daquelas associações que andam pelo país a pregar os direitos das mulheres fizesse uma visitinha à Rua Campo dos Mártires da Pátria.

Ontem o juiz Manuel Soares escreveu neste jornal um texto intitulado “Alguém que explique isto, por favor”, e eu pensei: “Excelente, vai justificar o acórdão do Tribunal da Relação do Porto que subscreveu em Junho, no qual dois homens que abusaram sexualmente de uma mulher semi-inconsciente se safaram com pena suspensa.” Mas não. Afinal era só um texto a queixar-se dos juízes de carreira terem perdido o monopólio das decisões em matérias de litígio fiscal (pelos vistos, alguns juízes queixam-se do excesso de trabalho, mas também se queixam da sua diminuição). O acórdão, esse, ficou por explicar. Mas vale a pena reflectir sobre ele, porque há três problemas distintos que devem ser sublinhados.

O primeiro problema tem a ver com o facto de o acórdão ser assinado pelo Tribunal da Relação do Porto. A Relação do Porto não se dá bem com o sexo, e seria útil que uma daquelas associações que andam pelo país a pregar os direitos das mulheres fizesse uma visitinha à Rua do Campo dos Mártires da Pátria. Desde o acórdão que absolveu o psiquiatra de abusar de uma paciente grávida no seu consultório, com o argumento de que para ser violação tinha de ter sido com mais força (acórdão de 13 de Abril de 2011); ao acórdão do juiz Neto de Moura que manteve a pena suspensa a um homem que agrediu violentamente a mulher com uma moca de pregos, usando como um dos argumentos que “o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou, e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído” (acórdão de 11 de Outubro de 2017); receio bem que a Relação do Porto comece a ter um histórico sinistro em matérias de sexo e costumes.

O segundo problema tem a ver com a própria lei. Ainda este ano a Amnistia Internacional acusou Portugal de não definir a violação como sexo sem consentimento, e alguns juristas contestaram essa interpretação. Mas este caso é um bom exemplo para ver quem tem razão. O artigo do Código Penal que define a violação (164.º) exige a prática de “violência”, “ameaça grave” ou “ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir” a vítima. Mas logo a seguir, o artigo 165.º define o “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência” como a prática de um acto sexual com “pessoa inconsciente”. Ou seja, pôr uma pessoa a dormir e ter sexo com ela é violação. Se já estiver adormecida é abuso sexual. Esta distinção é chocante, e não espanta que a maior parte das pessoas, quando confrontadas com o caso de dois funcionários de uma discoteca que copularam à vez com uma mulher incapaz de reagir, o considerassem uma violação. Era exactamente isso que deveria ser.

O terceiro problema tem a ver com a interpretação da lei. É verdade que não são os juízes que fazem as leis, mas são eles que as interpretam, e a complacência demonstrada pelos juízes desembargadores em relação aos dois abusadores é difícil de compreender. Maria Dolores da Silva e Sousa (relatora) e Manuel Soares consideraram que eles têm “escassíssimo pendor para a reincidência”, que a sua culpa se situa “na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica” e “ambiente de sedução mútua” e que “a ilicitude não é elevada”, já que não houve “danos físicos nem violência”. Imaginem a mulher abusada, que nem sequer pediu uma indemnização mas apenas a condenação dos dois homens, a ler uma passagem deste calibre. Este é o tipo de crimes cuja desvalorização é absolutamente inaceitável nos tempos que correm. E ainda bem.

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