Portugal sob a “troikalite”

O comportamento da Comissão revela aquilo que todos sabemos. Há governo de homens (dos países credores) e não de leis.

Volta-se à reunião do Eurogrupo de 7 de Setembro em Viena, analisando agora o resultado da 8.ª missão de monitorização pós-resgate a Portugal e, em particular, as palavras do director executivo do Mecanismo Europeu de Estabilidade a sugerir uma subida do rating da dívida pública portuguesa.

Estas missões semestrais, de técnicos da Comissão Europeia e do BCE (acompanhados por técnicos do Mecanismo Europeu de Estabilidade que “participaram nas reuniões”), que se realizarão enquanto Portugal não amortizar 75% dos 24,3 mil milhões de euros de empréstimos das instituições europeias, isto é, até 2035, são importantes. O objectivo das missões é verificar se o país é capaz de pagar os empréstimos que contraiu junto das instituições europeias e, se assim não for, recomendar medidas correctivas. Um regime de “troikalite” em bom português.

Como é habitual, as previsões da Comissão são enviesadas, porque os seus técnicos têm um incentivo a errar por excesso de precaução. Se se obrigar os países devedores a adoptar uma política orçamental mais austeritária do que o necessário “nenhum mal advirá ao mundo” nem às carreiras desses técnicos. Mas se o défice exceder a previsão podem “rolar cabeças” em Bruxelas, por assim dizer. Este é, porém, um enorme erro no desenho dos instrumentos de monitorização que está interiorizado na acção dos técnicos da Comissão, uma vez que muito provavelmente tem como consequência menores taxas de crescimento económico, do investimento, do emprego e da produtividade nos países devedores da Zona Euro.

Na primavera de 2017, a Comissão previa uma deterioração do saldo estrutural em 0,2% do PIB em 2017, “devido à ausência de medidas de consolidação orçamental”. Ex post, em 2018, a mesma Comissão estima que a melhoria do saldo estrutural em 2017 foi de 0,9% do PIB. Por conseguinte, o erro da previsão foi muito significativo: 1,1% do PIB. Ainda assim, a Comissão não reconhece que errou nas suas previsões. Pelo contrário, a Comissão (e a troikalite) afirma que o Governo não cumpriu os objectivos para a melhoria do saldo estrutural (ocorreu “algum desvio”) porque não obedeceu à recomendação, definida pela Comissão Europeia de acordo com regras que estabeleceu no seu Vade Mecum, de aumentar a despesa líquida primária apenas em 0,1% em termos nominais por ano (muito abaixo da taxa de inflação), tendo a despesa crescido acima dessa meta. Note-se que se a despesa tivesse crescido nos termos “impostos” pela Comissão e se essa despesa pública não tivesse impacto no crescimento económico (e tem), o saldo estrutural teria melhorado 1,4% do PIB, de acordo com as estimativas da Comissão, o que seria um ajustamento orçamental enorme num único ano.

Estes pormenores técnicos são dificilmente compreensíveis para as pessoas mas têm enormes implicações nas suas vidas. Na prática, com esta regra orçamental adicional, a Comissão defende que a despesa pública e, em particular, salários de funcionários públicos e pensões, ou seja, o rendimento de milhões de famílias portuguesas, tem de continuar a cair, em termos reais, ano após ano, até que a Comissão Europeia estime que o potencial de crescimento de longo prazo da economia portuguesa aumentou ou até ter sido atingido o objectivo orçamental de médio prazo (MTO), também definido pela mesma Comissão Europeia. Com tais regras e tais previsões a Comissão Europeia coloca em causa as democracias!

Em 2018 e 2019, a Comissão arrisca um pouco menos mas mantém a estratégia. Não prevê qualquer melhoria do saldo estrutural em 2018 e antecipa uma deterioração de 0,1% do PIB no mesmo saldo em 2019.

O ministro das Finanças português deveria, por conseguinte, com os seus homólogos de outros países, manifestar preocupação junto do comissário Moscovici pelo enviesamento sistemático das previsões da Comissão Europeia e seus efeitos nas suas economias.

Mas a mensagem fundamental da missão de monitorização é a relativa à análise da Comissão Europeia sobre a sustentabilidade da dívida pública portuguesa. O Governo português, no Programa de Estabilidade 2018-2022 apresentado em Abril, previa que a dívida caísse para 102% do PIB em 2022. Em contraste, a Comissão estima que a dívida pública só cairá para 108,5% do PIB em 2028. E se ocorrer um choque negativo nas taxas de juro e na taxa de crescimento económico, a dívida voltaria a 120% do PIB em 2028. Ou seja, a Comissão não acredita nas previsões do presidente do Eurogrupo e implicitamente parece admitir que a dívida pública portuguesa é insustentável.

Na conferência de imprensa, após a reunião, o presidente do Eurogrupo, Mário Centeno, declara que o desafio principal para Portugal é continuar a reduzir a sua dívida pública, reflectindo a principal mensagem da missão de monitorização.

O Governo também prometeu à “troikalite” que utilizará quaisquer desvios positivos para amortizar dívida mais rapidamente do que o previsto (p. 5 do relatório da missão). Ou seja, o Governo compromete-se a ir claramente além dos objectivos de consolidação orçamental definidos nas regras do Tratado Orçamental e mesmo no Programa de Estabilidade que já ia para além dessas regras. Esta promessa é muito significativa. Se as Administrações Públicas, por exemplo, vierem no futuro próximo a registar um excedente orçamental de 2% do PIB, o Governo comprometeu-se a prescindir de utilizar esse excedente para aumentar a despesa pública, nomeadamente o investimento público.

O comportamento das autoridades europeias é altamente discricionário e revela aquilo que todos sabemos. Há governo de homens (dos países credores) e não de leis.

As políticas públicas estão a constituir um enorme travão à actividade económica e ao desenvolvimento do país no médio e longo prazo poupando em excesso, nomeadamente através de saldos primários exagerados.

Face às exigências da Comissão Europeia, o Governo quase parece moderado nos seus objectivos orçamentais, parecendo adoptar o meio caminho. Contudo, as estimativas subjacentes ao Orçamento do Estado são excessivamente prudentes, conduzindo a desvios favoráveis sistemáticos. O Orçamento do Estado está recorrentemente enviesado. Com efeito, parece que o Governo prefere apresentar défices menores do que o previsto e sempre melhores do que no ano anterior.

Klaus Regling referiu que Portugal está num ciclo virtuoso e que antecipa uma subida do rating, que resultaria numa redução adicional das taxas de juro da dívida pública portuguesa. No presente, três das quatro agências de rating utilizadas pelo BCE classificam Portugal como classe investimento.

Acresce que basta a subida de dois níveis por pelo menos uma das agências de rating para o rating da dívida pública portuguesa passar a ter a letra A no início. As classificações de rating com letra A no início sinalizam dívida com mais elevada robustez financeira. Se tal vier a ocorrer, a procura por dívida pública portuguesa aumentaria, porque o BCE passaria a exigir menos dívida pública portuguesa para emprestar um dado nível de liquidez (o “haircut” para dívida pública de maturidade de sete a dez anos com rating entre BBB+ e BBB- é de 11,5% e passaria a ser de 3% com rating entre AAA e A-) e porque alguns investidores institucionais como bancos centrais, fundos soberanos e seguradoras passariam a poder adquirir (mais) dívida pública portuguesa.

Mas o destinatário principal da mensagem de Klaus Regling será certamente a Itália, que viu em Janeiro de 2017 o seu rating cair da letra A para a letra B. Se a Itália se “portar bem” em termos orçamentais, seguindo o exemplo do sempre obediente e “paciente” aluno Portugal, o rating poderia de novo subir e a despesa com juros cair.

É muito positivo que Portugal registe um excelente desempenho orçamental. Mas, embora seja fundamental reduzir o nível da dívida pública, o objectivo primeiro da política orçamental não é esse, mas sim promover o desenvolvimento da economia portuguesa e do nível de vida dos portugueses.

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