Hilberg, Arendt e Lanzmann: três olhares

As obras de Raul Hilberg, Hannah Arendt e Claude Lanzmann mudaram e moldaram o modo como olhamos o Holocausto.

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O Último dos Injustos, de Claude Lanzmann DR
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Claude Lanzmann, escritor e cineasta, Hannah Arendt, cientista política, Raul Hilberg, historiador, confrontaram-se com o mesmo problema: como narrar o mal radical ou explicar o inimaginável? Mudaram paradigmas e fizeram interrogações divergentes. Todos eles mudaram e moldaram o modo como encaramos o Holocausto/Shoah.

Raul Hilberg, judeu de Viena refugiado nos Estados Unidos, participou na Segunda Guerra Mundial como soldado americano e estabeleceu, em 1948, um projecto de vida: tratar o Holocausto como um “acontecimento histórico”. O seu mestre, Franz Neumann, avisou-o de que seria a seu “funeral académico”. Nos anos 1950, o tema estava fora de moda. O Julgamento de Nuremberga condenara os nazis. Estava-se em plena Guerra Fria. O grande tema era o totalitarismo. E, em Israel, o que se procurava eram os actos de heroísmo e resistência.

O jovem Hilberg decidiu passar por cima do que até então se escrevera. “Decidi interessar-me pelos executores alemães. A destruição dos judeus era uma realidade alemã. Foi posta em marcha nos gabinetes alemães, numa cultura alemã, e eu queria compreender como.” Narrará a “destruição dos judeus” a partir dos “executores” e dos seus próprios documentos, não a partir das vítimas. “É o executor quem tem a visão de conjunto, não a vítima.” Era um fenómeno sem precedentes, “uma determinação fria, um processo burocrático, gerido com método e inventividade”, de salto em salto até à “solução final”. Antes de perguntar “porquê”, era preciso estudar o “processo” e os seus mecanismos.

Conclui a tese em 1955. O livro foi recusado pelas editoras universitárias. Só o consegue publicar, quase clandestinamente, em 1961 — The Destruction of de European Jews (A Destruição dos Judeus Europeus). Foi ignorado durante 20 anos. Em Israel, o memorial de Yad Vashem acusou-o de se basear quase exclusivamente em fontes alemãs. Só nos anos 1980 é compreendida a sua “revolução historiográfica”. Morre, em 2007, como um ícone, o historiador por excelência do Holocausto.

O que é o mal?

Judia alemã e cientista política já célebre nos Estados Unidos, Hannah Arendt vai a Jerusalém em 1961 assistir ao julgamento de Adolf Eichmann, como enviada da New Yorker. As primeiras reportagens são publicadas no jornal e reunidas em livro um ano mais tarde — Eichmann em Jerusalém. Uma reportagem sobre a banalidade do mal (Edições Tenacitas, 2003). Desencadeou uma tempestade entre os intelectuais e nos meios judaicos americanos. O episódio é narrado no filme Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta, estreado em 2013.

Porquê a polémica? Porque Arendt encarava os carrascos nazis contra os estereótipos correntes. Não via em Eichmann um ser demoníaco mas um homem “terrível e aterrorizadamente normal”. No filme de Von Trotta, diz a actriz Barbara Sukowa, que a interpreta: “O pior mal no mundo é o cometido por pessoas vulgares, é o mal sem motivos, sem convicções, simplesmente por pessoas comuns que renunciaram à sua dignidade humana.” Nasce assim o conceito da “banalidade do mal”. Era uma obsessão antiga. Escrevera em 1945: “O problema do mal será a questão fundamental do pós-guerra na Europa.”

Um dos académicos que deu parecer negativo sobre o livro de Hilberg — “um mero relatório” — foi Hannah Arendt. Mas teve de o utilizar para se defender das críticas em Eichmann em Jerusalém. Na altura, o historiador continuava a ser um pária. E Arendt nunca fez o mea culpa.

Os nossos autores irão cruzar-se mais vezes. Em 2013, Claude Lanzmann estreia o filme O Último dos Injustos em polémica com Hannah Arendt, cujas teses sempre contestou.

Shoah

A obra fundamental de Lanzmann é Shoah, de 1985. “Mudou o debate sobre a relação entre o cinema e a memória do Holocausto”, escreveu o crítico israelita Uri Klein. “Shoah documenta os processos da indústria do extermínio. Situa-se no presente, filmando os locais onde o Holocausto teve lugar, através de entrevistas com sobreviventes.” Lanzmann recusa o recurso aos materiais de arquivo — embora o faça em filmes posteriores. Opta pela força dos testemunhos. A reconstrução do passado é um meio de fazer reviver os massacres para que não possam ser apagados. Escreveu: “Não é um filme de recordações (as recordações são coisas do passado), é por excelência um filme da memória e do presente.”

Exibido nas salas e nas televisões, atinge uma audiência de 60 milhões de espectadores. O efeito é brutal. “Graças a Shoah o saber histórico muda de natureza e assiste-se, durante nove horas e 30 minutos, a uma incarnação da verdade, o contrário da faculdade de asseptização da ciência, mesmo da ciência histórica.”

Ao contrário, O Último dos Injustos é um filme sobre a sobrevivência. Benjamin Murmelstein, antigo dirigente dos conselhos judaicos, acusado de colaboração com os nazis, recusa a culpa: “A mim ninguém pode julgar, porque não se pode colocar na minha posição.” Lanzmann quer dizer que esses judeus não tinham alternativa e “não mataram os seus irmãos”.

São três autores e três olhares cuja riqueza começa na própria divergência e a que não podemos escapar.

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