Quando a palavra está em vez das imagens

Claude Lanzmann fez da sua obra uma asserção com um sentido prescritivo, que daria origem a uma grande polémica: do Holocausto, não há imagens. E se as há estão do lado da ficção e do fetichismo, isto é, do lado da "mentira" hollywoodesca.

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Shoah, de 1985, o monumento com nove horas de duração que Lanzmann construiu com testemunhos do Holocausto DR

Para a maior parte de nós, Claude Lanzmann (1925-2018) era o autor desse “objecto do século” (como foi nomeado por um dos seus mais exaltados exegetas e defensores), o filme Shoah, de 1985, esse “monumento” para o qual o realizador trabalhou durante 12 anos e fez 350 horas de filmagens, que resultaram em nove horas e meia de filme, inteiramente preenchidas com as palavras de testemunho de sobreviventes dos campos nazis. Nele, a palavra dos protagonistas é tudo, já que Claude Lanzmann fez do seu filme uma asserção com um sentido prescritivo, que daria origem a uma grande polémica: do Holocausto, não há imagens. Daí, a decisão ético-ideológica de não fazer uso de nenhum arquivo. Com esse filme, tornou-se um severo guardião da lei da interdição das imagens, que defendeu  com fervor dogmático: não havendo imagens do Holocausto, não há representação, não pode haver ficção nem aquilo que na tragédia grega se chama catarse.

O percurso intelectual e artístico de Claude Lanzmann não começou com este filme, nem sequer com o cinema. O seu primeiro filme, Pourquoi Israël?, é de 1973. Esta ligação a Israel foi uma descoberta importante na sua vida: muito embora tivesse nascido numa família de origem judaica, não teve na sua infância nenhuma educação religiosa e cultural do judaísmo. Antes do cinema, foi um jornalista de grandes reportagens, como aquela que fez em 1958, durante uma viagem à Coreia do Norte. Nessa altura, ainda vivia com Simone de Beauvoir, uma relação que durou sete anos, de 1952 a 1959. Foi, aliás, o único homem com quem Beauvoir coabitou.

Ainda jovem, quando frequentava o liceu em Clermont-Ferrand, Lanzmann tinha tido um papel de primeiro plano na Resistência e integrado a Juventude Comunista. Depois estudou Filosofia, na Sorbonne, E foi condiscípulo de Deleuze, em Paris, no Liceu Louis-le-Grand (e seu amigo muito próximo, mais tarde). Quando conheceu Beauvoir, integrou a revista Les Temps Modernes, que esta tinha fundado com Sartre em 1945. Pela morte de Beauvoir, em 1986, tornou-se o director da revista. O seu último filme saiu este ano e chama-se Les quatre soeurs. Mais uma vez, é um filme-testemunho, de quatro mulheres sobreviventes de Auschwitz, retirado do material que filmara para fazer Shoah.

Forte, plural e polémico

Mas Lanzmann foi também um escritor. O seu livro de memórias, Le  Lièvre de Patagonie (2009), escrito com alguma relutância e por insistência dos amigos, é de pleno direito uma obra literária, original e de grande fôlego. E nele desfilam figuras importantes da história intelectual da França da segunda metade do século XX. Na sua biografia mais recente, há um acontecimento trágico, ao qual deu projecção pública, nas páginas de um número da Les Temps Modernes: o filho, Félix Lanzmann, morreu em Janeiro de 2017, com 23 anos, vítima de um cancro.

Claude Lanzmann foi um homem polémico, vigoroso, comprometido com o seu tempo e, muito especialmente, com a memória do Holocausto. Shoah é um filme que reclama do espectador um “espanto” que é aquele por onde também a filosofia começa. Numa entrevista aos Cahiers  du  Cinéma em 1985, Claude Lanzmann explicou assim o princípio que está na base do seu filme: "Comecei precisamente pela impossibilidade de contar esta história. O princípio do filme era, por um lado, o desaparecimento dos rastos: não ficou nada, e era necessário fazer um filme a partir desse nada. Por outro lado, a impossibilidade, para os próprios sobreviventes, de contar esta história, a impossibilidade de falar, a dificuldade – que se vê ao longo do filme – de dar à luz a coisa e a impossibilidade de a nomear: o seu carácter inomeável".

Lanzmann inaugurava assim um discurso sobre o seu filme que deduz dele uma estética negativa e faz apelo às especulações da teologia negativa. Irrepresentável, inimaginável, invisível, infigurável, impensável, intransmissível: eis as fórmulas usadas com frequência, e que estão na base dos debates e das polémicas em torno do filme. Shoah, que Lanzmann definiu como "uma obra visual da coisa mais irrepresentável", é um filme constituído por um coro imenso de vozes, sem recurso a imagens de arquivo, a documentos da época. Esta escolha formal encontra no discurso de Lanzmann sobre o seu filme uma razão que serviu muitas vezes para enunciar o seu princípio da invisibilidade do genocídio. A questão polémica em torno de Shoah é o facto de a sua estética ter sido muitas vezes reivindicada como uma moral e como uma regra: as imagens de arquivo não nos dizem nada da "verdade". Ou, nas palavras de Lanzmann: "Sempre disse que as imagens de arquivo são imagens sem imaginação." O arquivo, diz ele, só comunica informações, não afecta a emoção nem a memória.

Ora, o seu filme não foi feito para comunicar informações, o que está na sua base é o princípio de que qualquer imagem seria incapaz de dizer a verdade do Holocausto e é por isso que ele filma incansavelmente a palavra dos testemunhos. Reside aqui o núcleo de uma enorme polémica em que Lanzmann se viu envolvido (por exemplo, com o historiador de arte e filósofo Georges Didi-Huberman). Mas também em torno do filme de Spielberg, A Lista de Schindler, quando Lanzmann o acusou de pretender reconstruir Auschwitz e de ter feito um filme “obsceno”. Numa entrevista ao Le Monde, afirmou: "Spielberg escolheu reconstruir. Ora, reconstruir é, de certa maneira, fabricar arquivos. E se eu tivesse encontrado um filme existente (...) rodado por um SS e mostrando como três mil judeus, homens, mulheres, crianças, morriam juntos, asfixiados numa câmara de gás do crematório II de Auschwitz, não só não o teria mostrado, tê-lo-ia destruído".

Percebemos a lógica destas palavras se tivermos em conta que no filme de Lanzmann, Shoah, perpassa o discurso do irrepresentável ou do interdito da representação, de tal modo que, nele, como observou Jacques Rancière em texto incluído no volume L'Art  et  la  Mémoire  des  Camps, "o que há a representar não são os carrascos e as vítimas, é o processo de uma dupla supressão: a supressão dos judeus e a supressão dos rastos da sua supressão". Para Lanzmann, as imagens de arquivo têm o valor de prova documental, mas, falhas de imaginação, nada dizem da "verdade". O que suscitou uma crítica violenta de Didi-Huberman, para quem a questão não está no facto de Lanzmann ter optado exclusivamente por dar a palavra aos sobreviventes do Holocausto, mas no facto de deduzir que não há, absolutamente, imagens da Shoah e que qualquer imagem de arquivo está do lado da ficção e do fetichismo, isto é, do lado da "mentira" hollywoodesca, onde se encontra A Lista de Schindler. No filme de Lanzmann não há de facto imagens de execuções sumárias, nem corpos desmantelados e amontoados como meros pedaços de carne. O que há é a palavra das testemunhas, numa elaboração em que Claude Lanzmann revela pela primeira vez o seu génio filosófico.

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