Torne-se perito

Narrar a destruição dos judeus com os documentos dos carrascos

O historiador Raul Hilberg fez uma revolução na historiografia do Holocausto. Foi o primeiro a narrá-lo como um processo, reconstituindo minuciosamente as suas etapas, a máquina burocrática e as operações
de extermínio. Ignorado durante 20 anos, morre como "ícone"

a O historiador americano Raul Hilberg, 81 anos, morreu sábado num hospital de Vermont, de cancro de pulmão. A sua vida roda em torno de uma decisão tomada aos 22 anos: estudar o Holocausto como "acontecimento histórico". A sua investigação culminou num imenso livro concluído em 1955 e apenas publicado em 1961, The Destruction of the European Jews. Entre as dezenas de milhares de estudos sobre o genocídio, este marca um corte - há um antes e um depois. Quase ignorado durante 20 anos, Hilberg morre como "ícone", celebrado como autor de uma "revolução historiográfica" (Nicolas Weill).Resumiu o seu programa numa frase: "Decidi interessar-me pelos executores alemães. A destruição dos judeus era uma realidade alemã. Foi posta em marcha nos gabinetes alemães, numa cultura alemã, e eu queria compreender como." Decide, portanto, partir do ponto de vista dos "executores" e não das vítimas. Recusou, enquanto historiador, utilizar os termos Holocausto ou Shoah, o primeiro pela sua carga religiosa (sacrifício pelo fogo), o segundo pela identificação com as vítimas. "É o executor quem tem a visão de conjunto, não a vítima."
Trabalhando uma massa incalculável de documentos, narrou o Holocausto como "um processo", composto por sucessivas etapas, reconstituindo exaustivamente a máquina burocrática e as operações de extermínio - a definição das vítimas por decreto, a expropriação, a concentração, as matanças por comandos móveis, a deportação, os campos de extermínio.
"A destruição dos judeus era um fenómeno sem precedentes" e por isso, antes de perguntar "porquê", era necessário estudar a sua lógica e os mecanismos. É a partir daqui que se pode pensar, na plenitude, a dimensão ética da catástrofe.
Além de A Destruição, Hilberg deixa-nos outras obras importantes, designadamente Perpretators Victims Bystanders (1992), em que as vítimas ocupam o lugar central, e The Politics of Memory (1996), uma autobiografia intelectual. Gostava de se definir como "profundamente conservador", ateu e de hábitos "tipicamente pequeno-burgueses".
Nos arquivos
Nascido em Viena em 1926, Raul Hilberg assistiu na infância à propagação da peste nazi. Em 1938, depois da anexação da Áustria pela Alemanha, viu o pai ser preso. Mas logo vem um golpe de sorte: como ele tinha sido combatente na I Guerra Mundial, um oficial alemão decide deixar partir a família. Os Hilberg vão para Cuba e instalam-se depois em Nova Iorque. Muitos parentes serão exterminados.
Raul começa por estudar Química. Aos 18 anos, interrompe os estudos e alista-se no exército americano, fazendo os últimos meses de guerra na Alemanha. Em Munique, a sua unidade interroga altos dignitários nazis e procura arquivos, para preparar o Julgamento de Nuremberga. Raul descobre seis caixotes com a biblioteca pessoal de Hitler e, sobretudo, tem acesso a pastas abandonadas pelos nazis depois da libertação do campo de Dachau. Estava decidida a sua vida.
Regressado à América, troca a química pela ciência política. Em 1948, decide consagrar a sua vida ao estudo da destruição dos judeus, que escolhe como tema de tese de doutoramento em 1952. É influenciado pelas ideias do seu professor Franz Neumann (1900-54), exilado alemão que publicara um estudo sobre o funcionamento "caótico" da burocracia nacional-socialista (Behemoth). Newman procura dissuadi-lo e diz: "É o seu funeral" académico.
Hilberg entra no War Document Project, o que lhe dá acesso aos arquivos alemães apreendidos pelos americanos. Começa uma busca exaustiva, a consulta e cotejo de dezenas de milhares de documentos, a sua decifração, as sucessivas reinterpretações. Depressa aprende que as mais anódinas fontes são minas de informação. O extermínio dos judeus atravessa toda a administração e toda a sociedade. Só para Auschwitz, trabalharam 200 empresas. No fim da vida reivindicou o estatuto de "homem vivo que mais documentos leu".
Reescreverá duas vezes A Destruição, em 1985 e 2003, esta graças à abertura dos arquivos do antigo bloco soviético. Os três volumes da versão final lêem-se de um fôlego. São uma narrativa, um inquérito, uma tese, estruturados e sistematizados com rigor inapelável e numa escrita que - diz - procura deliberadamente "uma frieza neutra, mecânica, objectiva".
Explica o seu editor francês, Eric Vigne, da Gallimard: "É uma escrita branca, sem pathos, apenas a violência dos factos. É uma das obras que melhor expõe a violência da Shoah. A violência nasce do facto deste acontecimento totalmente irracional decorrer de um processo altamente racionalizado."
De Arendt a Israel
Hilberg defendeu a tese em 1955, com grande aplauso, mas, como Neumann o avisara, o assunto estava fora de moda. Nuremberga julgara os nazis. Aos israelitas interessavam os actos de resistência e heroísmo. Começava a Guerra Fria. Hannah Arendt teorizava o totalitarismo, conceito de que Neumann e Hilberg não partilhavam.
Demorou a arranjar lugar numa universidade, a de Vermont, e viu o livro ser recusado pelas editoras universitárias, uma delas a conselho de Hannah Arendt, que o qualificou de "inútil", mero "relatório", desprezível aos olhos da filósofa política.
Mas quando, em 1963, foi atacada pelas suas reportagens sobre o julgamento de Eichmann (reunidas em Eichmann em Jerusalém), acusada de responsabilizar os judeus por não terem resistido ao Holocausto e de desculpar implicitamente os carrascos, a quem recorreu Arendt? Ao livro de Hilberg. Ele fora entretanto publicado, quase clandestinamente, em 1961, por uma pequena editora de Chicago, graças a um mecenas - sobrevivente do Holocausto.
A "sentença" de Arendt, que nunca fez mea culpa, foi corroborada pelo guardião israelita da memória, o memorial de Yad Vashem: acusou o livro de se basear "quase exclusivamente na autoridade de fontes alemãs"; e emitiu reservas "sobre a evolução da resistência judaica (activa e passiva) durante a ocupação nazi". Só agora o livro foi traduzido em Israel.
Hilberg chega a várias conclusões. O anti-semitismo desempenhou um grande papel mas não explica a destruição sistemática, que não é uma "explosão de ódio", mas "uma determinação fria, um processo burocrático gerido com método e inventividade", diz numa entrevista.
No entanto, não encontra um plano pré-determinado de aniquilação. É uma ofensiva que evolui, de salto em salto, até à "solução final". Mas tudo se anuncia muito cedo: "Nos primeiros dias de 1933, quando o primeiro funcionário redigiu a primeira definição de "não-ariano" numa norma administrativa, a sorte do mundo judaico europeu está selada."
Por fim, a resistência foi marginal. As comunidades judaicas, enraizadas há dois milénios na Europa, adoptaram uma "estratégia de sobrevivência", resignaram-se e colaboraram para limitar as perdas. O genocídio era uma ideia inimaginável.
A História repete-se
No último capítulo de A Destruição, intitulado "As implicações", Hilberg fala dos problemas éticos, da criação da figura do crime de genocídio e do destino da palavra de ordem dos judeus: "Nunca mais."
Na terceira edição, prolonga a reflexão até aos nossos dias, culminando na análise do genocídio dos tutsis no Ruanda, "à vista de todo o mundo". Ninguém respondeu ao desafio.
"Os juristas do Departamento de Estado, nos Estados Unidos, recusaram mesmo o emprego do termo genocídio a propósito do Ruanda, com medo que isso os obrigasse a fazer qualquer coisa." O Conselho de Segurança da ONU adoptou, a 17 de Maio de 1994, uma "resolução unânime" condenando o "massacre de civis". A última frase do livro é portanto esta: "A História tinha-se repetido".

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