De Bucareste para Lisboa, um pai à beira do fim

Pororoca é a melhor ficção a concurso no IndieLisboa deste ano – um filme esmagador na melhor tradição da “nova vaga romena” em que o festival tanto tem apostado.

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Pororoca, de Constantin Popescu: a grande ficção a concurso neste IndieLisboa 2018 DR

Devemos ao IndieLisboa a divulgação e a aposta contínua na “nova vaga romena” – foi o festival a revelar em Portugal, na edição de 2006, o “ponto zero” desse movimento, A Morte do Sr. Lazarescu, e desde então não tem havido ano sem Roménia na programação, persistência que culminou na vitória de Aferim!, de Radu Jude, em 2015. Não é por isso surpresa que a grande ficção da competição deste 2018 venha da Roménia e se inscreva de corpo inteiro no movimento que revelou ao mundo Cristi Puiu, Corneliu Porumboiu ou Cristian Mungiu: Pororoca, terceira longa de Constantin Popescu (dia 4, às 21h15, no Cinema São Jorge), é um belíssimo (e extraordinariamente desconfortável) filme sobre a desintegração de uma família, e sobretudo do pai, quando a filha de cinco anos desaparece no parque infantil. O desaparecimento é mostrado num extraordinário plano-sequência de 18 minutos, rodado com câmara à mão – a mesma câmara à mão de todos os momentos decisivos de tensão que sugerem uma pressão insustentável a borbulhar logo abaixo de uma superfície aparentemente precisa.

É esse descontrolo sempre à beira da explosão que Popescu observa de perto, com um actor – o soberbo Bogdan Dumitrache – a entregar-se por inteiro à insuportável dor de perder uma filha e de sentir que todos o culpam pelo desaparecimento. “Pororoca" é o nome dado na Amazónia a um macaréu fortíssimo que chega a derrubar árvores – Pororoca, o filme, traça o percurso de uma onda de fúria equivalente por dentro do pai dilacerado, até uma explosão libertar brutalmente toda a sua raiva e impotência. Algures entre o Aurora de Cristi Puiu e o Raptadas de Denis Villeneuve, mas trabalhando em coordenadas muito próprias, Pororoca é inexorável, esmagador.

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The Dead Nation, de Radu Jude DR

Não é o único título romeno na edição 2018 do IndieLisboa. Radu Jude, autor de Aferim! e um dos cineastas que o festival mais tem acompanhado, traz o espantoso documentário que mostrou em Locarno 2017, The Dead Nation (dia 6, às 18h, no Cinema Ideal). É um trabalho delicado mas inspirado de found footage, realizado a partir do arquivo de imagens de um fotógrafo de província – fotos de família, casamentos, baptizados, funerais, festas de aldeia, recrutas militares, etc. Mas às imagens descobertas durante a pesquisa para a sua ficção anterior, Scarred Hearts, o realizador sobrepõe, em voz off, citações do diário de Emil Dorian, médico judeu de Bucareste, num processo de dissociação que contrapõe à aparente bonomia das imagens a aterradora queda no populismo e na xenofobia anti-judaica da sociedade romena antes da e durante a Segunda Guerra Mundial. E quando ouvimos estes relatos de uma vida em permanente medo, quando ouvimos falar das perseguições, das multidões em fúria, das restrições de movimentos, percebemos que The Dead Nation é um filme assustadoramente “para hoje”.

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Victory Day, de Sergei Loznitsa DR

Num Indie que apostou em força nos documentários, vale a pena destacar três outros títulos. Com Victory Day (dia 6, às 22h, no Ideal), Sergei Loznitsa continua o seu projecto de documentários observacionais que nos deu Maidan ou o soberbo Austerlitz, aqui, acompanha os emigrantes russos que celebram num parque de Berlim o dia da vitória sobre os nazis na Segunda Guerra Mundial – e filma a aparente banalidade de uma comemoração intimamente ligada à nostalgia da URSS e à crença numa Rússia imperial e poderosa que Vladimir Putin tem vindo a instaurar. Noutra frente, o festival propõe um fascinante programa duplo: primeiro, um dos clássicos do documentário, Grey Gardens, dos irmãos Maysles (dia 4, às 15h30, na Cinemateca), sobre a vida reclusa de Edith e Edie Bouvier Beale, parentes de Jackie Kennedy vivendo na miséria numa mansão decadente; depois, That Summer (dia 4, às 19h, na Cinemateca), a mais recente incursão nos arquivos do sueco Goran Hugo Ölsson (Black Power, A Respeito da Violência), que desencantou imagens filmadas em 1972 para um documentário que nunca foi completado mas que deu o “empurrão” para a existência de Grey Gardens

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