Juniores, seniores e testamentos no IndieLisboa

Histórias de famílias, felizes e infelizes, no concurso internacional do festival, com o búlgaro ¾ a ganhar aos pontos.

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¾, de Ilian Metev DR

As questões da família e da juventude foram sempre temas recorrentes no IndieLisboa – em grande parte porque a passagem à idade adulta é um tema caro a muitos dos cineastas (jovens ou menos jovens) que fazem hoje filmes fora do circuito mainstream. Mas há uma diferença entre fazê-lo com despretensão e inteligência, como o búlgaro Ilian Metev no bem simpático ¾ (dia 2, às 21h30, na Culturgest; dia 4, às 22h, no Cinema Ideal), e fazê-lo com a opacidade ensimesmada e repetitiva da argentina Alessia Chiesa em El Día que Resistía (dia 3, às 22h, no Ideal). 

O filme de Metev, que venceu o concurso Cineasti del Presente em Locarno no ano passado, encarreira na lógica dos “cinemas do real” que parece nortear o Indie deste ano: esta história de uma família “a três quartos”, com pai e dois filhos, documenta, como se fosse um home movie, os dias que antecedem a partida de Mika, a filha mais velha, para uma academia de música. Para que conste, o filme é abertamente uma ficção, mesmo que o modo como Metev filma esteja permanentemente no fio da navalha do documental – é algo que o búlgaro aperfeiçoou na sua excelente longa anterior, Sofia’s Last Ambulance, e que ajuda (e muito) o espectador a embarcar neste olhar discreto, modesto, mas extremamente atento às relações familiares. Essas características – discrição, modéstia, atenção, inteligência – são comuns ao tipo de longa em que o Indie parece ter-se especializado, o chamado “filme do meio” que cada vez mais tem dificuldades em existir no mercado e que, sem o apoio do circuito de festivais, talvez nem chegasse à produção. O que seria profundamente injusto.

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El Día que Resistía, de Alessia Chiesa DR

A família de ¾ não tem mãe, mas os miúdos de El Día que Resistía não têm sequer pais – são três irmãos que residem sozinhos numa casa de campo, numa espécie de férias eternas, esperando que os pais voltem. O filme evita qualquer datação temporal e exclui todas as marcas da tecnologia moderna (telemóveis, computadores, televisores, etc.), sugerindo uma referência oblíqua às vítimas desaparecidas da ditadura argentina – mas, mesmo que essa citação esteja presente, Alessia Chiesa está mais inspirada em explorar o universo dos contos de fadas, com a história de Hansel e Gretel (também eles deixados pelos pais na floresta) como guia condutor. O problema é que, apesar da elegância formal do filme (com alguns planos lindíssimos da natureza) e do à-vontade das três crianças, El Día que Resistía é um quebra-cabeças sem solução. Parece comprazer-se no seu onirismo opaco e suspenso, limita-se a percorrer os mesmos corredores sem nunca mostrar interesse por encontrar a saída, e o espectador fica ali a perguntar-se o que raio acabou de ver.

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An Elephant Sitting Still, de Hu Bo DR

Já que estamos a falar de famílias, uma nota breve para a única longa da competição internacional que já foi exibida mas não tem segunda passagem. Estreada no Forum de Berlim, An Elephant Sitting Still tornou-se num pequeno fenómeno de crítica no circuito dos festivais: é a primeira e única longa-metragem do escritor chinês Hu Bo, aqui realizador, argumentista e montador, que se suicidou, aos 29 anos de idade, após terminar a montagem. São 24 horas na vida de quatro pessoas acometidas por dilemas familiares e que um caso de bullying num liceu local acaba por juntar de modo circunstancial, num mosaico que deve tanto aos retratos sociais de Jia Zhangke como ao formalismo desesperado de Bela Tárr e ao naturalismo observacional de Wang Bing, mas que tem como santo protector o existencialismo de Dostoiévski. Na prática, An Elephant Sitting Still é um romance posto em imagens, onde se sente um cineasta em devir, com ideias e referências logo esmagadas pelo peso da inexperiência, pela duração interminável (quatro horas) e pelo tom niilista e fatalista desta história que pinta a China moderna como um inferno eterno na terra. É impossível não o ver como um testamento em imagens, tanto como é impossível não o sentir como uma versão “em bruto” que ficou por burilar – é um caso em que o filme fica muito aquém do fenómeno. 

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