As imagens que (fazem) falta num Indie em modo Doc

Dois óptimos documentários na competição internacional, fora os que ainda aí vêm, num ano onde o IndieLisboa percorre de maneira estimulante os corredores dos cinemas do real.

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The Image You Missed still dr
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Il risoluto dr

Parece maldade dizer que alguns dos títulos mais entusiasmantes do IndieLisboa em 2018 poderiam perfeitamente ter lugar no Doclisboa, mas isso seria estar a meter em gavetas coisas que não têm de ser metidas em gavetas. O Indie sempre mostrou documentários ao longo dos seus 15 anos, mesmo em competição, e 2018 não haveria de ser excepção, abrindo as portas em praticamente todas as secções aos “cinemas do real”, quer sejam documentários, ensaios ou híbridos. O que é, no entanto, de assinalar é: o movimento de proliferação dos cinemas do real parece não dar sinais de abrandar, tanto em termos de quantidade como de qualidade.

É o caso de Il Risoluto (repete terça-feira, dia 1 de Maio, às 14h30 na Culturgest) e The Image You Missed (repete terça-feira, dia 1, às 18h30 no Ideal), dois documentários escalados para o concurso internacional do certame lisboeta, a par de outros títulos que vão passar nas secções paralelas (como O Processo, onde Maria Augusta Ramos filma metodicamente o impeachment de Dilma Rousseff, ou Victory Day, com Sergei Loznitsa a acompanhar as celebrações da vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial pelos emigrantes russos na antiga Berlim Leste). Mas o que importa agora é a pièce de résistance que é o filme do italiano Giovanni Donfrancesco sobre as memórias de um homem que, em adolescente, fez parte das milícias fascistas de Génova; e o delicado ajuste de contas do irlandês Donal Foreman com o pai que mal conheceu mas também com uma identidade que o persegue sem que ele a tenha conhecido.

No fundo, no fundo, são ambos filmes sobre a identidade e a nacionalidade, vistos no entanto de maneiras muito diferentes. Donfrancesco vai ao Vermont filmar Piero Bonamico, que aos 15 anos de idade fazia parte dos Risolutos, uma temida milícia fascista, e questioná-lo sobre as suas experiências. No seu trabalho com a duração de cada plano e do próprio filme (2h40), na simplicidade austera do seu dispositivo formal que se concentra exclusivamente no rosto e no corpo de Bonamico e nunca recorre a imagens de arquivo, mas também na sua dimensão de testemunho para memória futura, Il Risoluto vai beber à escola Wang Bing (impossível não nos lembrarmos de Feng Ming).

Mas, nesse processo de rememoração de uma vivência dos anos 1940, o filme remete igualmente para a Terra de Ninguém de Salomé Lamas: quanto do que Bonamico conta, por entre os factos historicamente comprováveis, não reflecte também uma recriação ou alteração da história, procurada ou inadvertida? Bonamico partiu de Itália e abandonou o país que nada fez por ele a não ser torná-lo num pequeno fascista; recriou-se no Vermont, com a sua mulher americana, mas é possível verdadeiramente deixar o passado para trás?

Giovanni Donfrancesco deixa a pergunta no ar para o espectador responder. Donal Foreman dá uma resposta negativa, depois de levantar as mesmas dúvidas no diálogo cruzado por imagens com o pai que mal conheceu: o passado não ficou lá atrás, porque, à imagem do pai, ele faz filmes, e porque é natural de um país onde as marcas do passado estão permanentemente presentes. O título de The Image You Missed remete forçosamente para Rithy Panh e a sua Imagem que Falta, mas as imagens que estão aqui em falta não são dos Troubles da Irlanda do Norte que Arthur MacCaig filmou apaixonadamente ao longo dos anos 1970 e 1980; são as da relação que nunca existiu entre o fotógrafo e cineasta americano que acabou por se radicar em Paris e o seu filho, nascido em Dublin de uma noite de prazer com uma amiga também ela fotógrafa, que assumiu como seu mas cujo crescimento acompanhou apenas à distância. Há muitas imagens de MacCaig e Foreman separados; quase não existem imagens dos dois juntos. Ironicamente, ambos vivem com e para as imagens. E se o pai queria ser testemunha, mostrar ao mundo o que ele não via sobre a situação na Irlanda, o filho sabe que hoje há demasiadas imagens, tantas que se calhar o que é mais importante é o que não está lá, o que não se vê. Mas esse vazio não é substituível, a imagem que falta faz falta por uma razão. The Image You Missed é um ensaio apaixonante sobre essa razão. 

 

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