A morte, na sua normalidade

Se "A Morte do Sr Lazarescu" vai contra alguma coisa é contra aquelas visões idílicas da vida hospitalar (sempre muito limpa, bondosa, asséptica) que conhecemos de algumas séries televisivas.

Um pouco como aconteceu com o cinema turco (este, muito por força de Nuri Bilge Ceylan) também o cinema romeno, outra cinematografia europeia tradicionalmente com pouca expressão no estrangeiro, conquistou em tempos recentes direito a outra presença e a outra visibilidade nos festivais e mercados internacionais, até com alguns prémios importantes.

"A Morte do Senhor Lazarescu", de Cristi Puiu (n. 1967), foi um dos filmes responsáveis por esse estado de coisas, e por cá até já se fez notar quando integrou a secção competitiva do festival IndieLisboa. É grande a tentação de, para falar dele, não fazer mais do que descrevê-lo. Seria a melhor maneira de responder aquela que é a sua grande força, a aposta num realismo exaustivamente descritivo (mas, ao mesmo tempo, muito pudico: escrevemos "exaustivamente", não "exacerbadamente").

"A Morte do Sr. Lazarescu" é a história de um homem, um velhote de Bucareste, não especialmente rico mas também não especialmente pobre, que uma noite se sente mal em casa e telefona para o 112. O filme, conduzido pela câmara neutra, mas não fria nem inocente, de Cristi Puiu, será a história da pequena e terminal (?) odisseia que assim começa, viagem nocturna por ambulâncias e hospitais dada numa continuidade que não sendo exactamente em "tempo real" é quase como se fosse.

Que encontra o Sr. Lazarescu? Uma profusão de diagnósticos, quase sempre contraditórios; muita burocracia, quase sempre redundante (chega a ser um "gag" o número de vezes que o pobre Lazarescu tem que recitar o seu nome completo); uma quantidade de médicos e enfermeiros, divididos entre a mecânica eficácia profissional com que fazem o seu trabalho e aquelas que são as suas verdadeiras preocupações pessoais naquela noite em particular.

E, sobretudo, o Sr. Lazarescu encontra uma espécie de terrível banalidade: está doente, porventura moribundo, mas isso, num hospital é uma coisa corriqueira (então logo na noite em que adoeceu, em que houve um desastre de autocarro, os doentes e os moribundos são às dúzias).

"A Morte do Sr Lazarescu" não é um "Sicko" romeno, não funciona como uma denúncia do sistema de saúde daquele país - e nem sequer temos razões para acreditar que as suas desventuras não se pudessem repetir em qualquer cidade de qualquer outro país. Há uma certa "exposição", com certeza, mas a Puiu o que interessa é jogar contra ela, contra a impressão de normalidade que é o funcionamento daquela noite hospitalar, o lento apagamento de um ser humano. A morte vista também ela na sua normalidade, cruel, solitária, inevitável. Feia, com pústulas e maus cheiros - se "A Morte do Sr Lazarescu" vai contra alguma coisa é contra aquelas visões idílicas da vida hospitalar (sempre muito limpa, muito bondosa, muito asséptica) que conhecemos de algumas séries televisivas (mormente americanas) sobre médicos. Nelas, são os doentes que cruzam a vida dos médicos, chegam e desaparecem da vista. Aqui, é ao contrário: são os médicos que cruzam fugazmente a vida do doente.

O Sr. Lazarescu, perante a irredimível normalidade (e até uma certa elegância) do pessoal hospitalar, atravessa o filme como uma "vanitas", uma lembrança da falta de "glamour" da nossa mortalidade, uma pequena caveira a um canto do enquadramento.

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