Os mesmos dados, leituras diferentes

A história que é possível contar com as estatísticas da execução orçamental de 2017, em contabilidade pública, é diferente da exposta pelo Ministro das Finanças no seu artigo de opinião, que se baseia em estatísticas da contabilidade nacional.

“Existem três tipos de mentiras: mentiras, mentiras malditas e estatísticas”
expressão atribuída a Benjamin Disraeli por Mark Twain, mas primeiro documentada numa carta de 1891 ao jornal britânico National Observer

 

A execução orçamental parece estar a correr bem nos três primeiros meses de 2018. Com efeito, de acordo com o Ministério das Finanças a execução, em contabilidade pública, “quando corrigidos os factores especiais […] está em linha com o previsto no Orçamento do Estado para (OE2018)”, com a receita e a despesa a crescer a uma taxa homóloga de 3,5% e 3,4%, respectivamente, e o saldo orçamental primário (antes da despesa com juros) a melhorar 272 milhões de euros. 

Porém, quando se consideram os objetivos para o nível de receitas e despesas no OE2018 em contabilidade pública e os comparamos com a execução orçamental provisória de 2017, a receita e despesa deveriam crescer 6,6% e 7,6%, respectivamente, taxas que, a serem correctas, seriam excessivas tanto mais que também se assume que a despesa com pessoal somente cresceria 0,2% em 2018.

Acresce que, dados esses objectivos do OE2018, as taxas de crescimento da receita e da despesa de 3,5% e de 3,4%, respectivamente, observadas no primeiro trimestre, não poderiam estar “em linha com o previsto no OE2018”.

É evidente que nem a receita nem a despesa crescerão em 2018 para os níveis previstos no OE2018 e que esses objectivos para a receita e despesa do OE2018 sinalizam que este já não tem correspondência com a realidade, tendo sido largamente ultrapassado pelos factos.

O Ministro das Finanças, no seu artigo de opinião no Público, salienta a precisão como os objectivos definidos no OE2017 foram atingidos. O desvio favorável de mil milhões de euros no défice público de 2017, em contabilidade nacional (a óptica relevante para Bruxelas), é explicado pelo crescimento da receita acima do esperado em resultado do maior crescimento económico e pela queda da despesa com juros em resultado da diminuição da taxa de juro.

Mas as estatísticas, como sugere a citação acima, podem legitimamente ser utilizadas para contar várias histórias alternativas. 

Por um lado, como explica Nuno André Martins a 6 de Abril no Observador, as cativações e a dotação provisional tornam difícil estimar os desvios na execução orçamental em contabilidade nacional. Se se procurar corrigir o défice de 2017 deste efeito, todos os programas (e ministérios) teriam gasto abaixo do previsto, ao contrário do que defende o Ministro das Finanças. Acresce o efeito de operações não recorrentes como abaixo se refere.

Por outro lado, a evolução das contas públicas de 2017 em contabilidade nacional e em contabilidade pública foi significativamente diferente. Note-se que o défice em contabilidade nacional é calculado numa óptica de compromissos assumidos, mesmo que, por exemplo, a despesa pública assumida e realizada ainda não tenha sido paga, enquanto que o défice em contabilidade pública é calculado numa óptica de caixa, ou seja, de entrada e saída de dinheiros nos cofres públicos. Ora as elevadas taxas de crescimento da receita (+6,6%) e da despesa (+7,6%), em contabilidade pública, subjacentes ao OE2018 resultam, afigura-se, dos desvios na execução de 2017 também em contabilidade pública. Com efeito, o OE2017 previa que, em contabilidade pública, a receita crescesse 3,94% e a despesa 4,45% em relação à execução de 2016 mas, apesar da surpresa favorável no crescimento económico em 2017, a receita cresceu 3,8%, i.e., foi 111 milhões de euros inferior ao previsto no OE2017. A despesa cresceu apenas +1,65% (menos 2300 milhões de euros que o orçamentado).

Ou seja, o crescimento económico em 2017 surpreendeu pela positiva, mas mesmo assim a receita foi ligeiramente inferior à prevista no OE2017. Em contraste, a despesa cresceu a uma taxa que é pouco mais de um terço da taxa de crescimento prevista no OE2017, i.e., muito abaixo da prevista.

Refira-se ainda que, de acordo com o Ministro das Finanças, utilizando estatísticas em contabilidade nacional, o contributo fundamental para a redução do valor observado no défice de 2017, face ao valor previsto no OE2017, foi a enorme redução da despesa com juros. No entanto, quando se consideram as estatísticas em contabilidade pública, a despesa com juros em 2017 (8299 milhões de euros) é ligeiramente superior ao valor previsto no OE2017 (8285 milhões de euros).

Ou seja, a história que é possível contar com as estatísticas da execução orçamental de 2017, em contabilidade pública, é diferente da exposta pelo Ministro das Finanças no seu artigo de opinião, que se baseia em estatísticas da contabilidade nacional, relevante para Bruxelas. Mas é importante analisar também a evolução das contas públicas de 2017 à luz da execução orçamental na óptica da contabilidade pública. São leituras alternativas possíveis das estatísticas disponíveis da mesma realidade: a execução orçamental de 2017.

É, contudo, possível retirar várias ilações da situação em que nos encontramos.

Primeiro, o Ministério das Finanças pode determinar em algumas décimas, num sentido ou noutro, o défice orçamental final em cada ano. Afigura-se que todos os ministros das Finanças, pelo menos desde 1999, senão mesmo antes, recorreram a receitas extraordinárias para apresentar um melhor défice orçamental em contabilidade nacional. Essas operações tipicamente oneravam o défice dos anos seguintes.

Mas, em 2017, a estratégia do Ministério das Finanças parece ter sido a oposta.

Por exemplo, o Ministério das Finanças refere “pagamentos de anos anteriores, no montante de 413 milhões de euros, realizados ao abrigo do aumento de capital dos Hospitais E.P.E. efectuado no final de 2017”. Estes pagamentos, provavelmente, oneram o défice em contabilidade nacional de 2017 em cerca de 0,2% do PIB, mas somente se reflectem no défice em contabilidade pública de 2018. De igual modo, o facto da maior parte do reembolso da garantia do BPP ser contabilizada em 2018 e não em 2017 (+0,2% do PIB), como previsto no OE2017, também prejudicou o défice, em contabilidade nacional, de 2017.

Estas operações, compreensíveis, porque criam espaço de manobra e flexibilidade na execução do OE2018, deixam-nos no entanto sem referencial sobre o verdadeiro ponto de partida para a execução orçamental de 2018. Teria o défice de 2017, em contabilidade nacional, sem capitalização da CGD e Novo Banco e sem estas operações sido 0,9% do PIB ou 0,5% do PIB? Provavelmente somente no Ministério das Finanças se terá uma noção perfeita que depende também de quais são as operações tipicamente recorrentes no final de cada ano.

Segundo, como referido em coluna anterior, parece provável que a activação da garantia contingente em 792 milhões de euros pelo Novo Banco (cerca de 0,4% do PIB) venha a onerar o défice de 2017, tanto mais que o Fundo de Resolução, que está dentro do perímetro de consolidação orçamental, comunicou a 28 de Março que constituiu uma provisão de igual montante nas suas contas de 2017, referente a pagamento que irá ocorrer e onerará as contas em contabilidade pública em 2018.

Se assim for, o défice em contabilidade nacional de 2017 subirá para 3,4% do PIB. E, em consequência, a previsão do Governo para o défice em contabilidade nacional de 2018 deveria automaticamente ser revista em baixa de 0,7% para 0,3% do PIB (no OE2018 aprovado em Assembleia da República estava previsto um défice revisto de 1,1% do PIB).

Acresce que mesmo essa previsão (0,3% do PIB), dado o bom comportamento da receita e da despesa com juros, se afigura conservadora. A incógnita parece ser uma possível nova activação da garantia contingente pelo Novo Banco em 2019, com reflexos na conta de 2018.

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