A produtividade e a política orçamental, 2018-2022

Que Portugal se tem de “preparar para o futuro”, como avisava o ministro das Finanças na semana passada, é ponto assente. Mas é preciso substituir os verbos “cortar” e “conter” por “controlar” e “reformar”.

“Portugal vive o seu melhor desempenho económico de várias décadas”
Mário Centeno [1]

A atual recuperação da economia portuguesa é i) extraordinária, e devemos conformar-nos com níveis mais modestos de crescimento mais cedo do que mais tarde – 2,2-2,3% no Programa de Estabilidade (PE) ou mesmo 1,7-1,8% (CFP) –  ou ii) devemos ser mais ambiciosos e pretender que um crescimento de quase 3% seja o “novo normal”?

A afirmação acima reproduzida sinaliza que o PE apresentado na passada sexta-feira se baseia na visão i) – e passa, de resto, por um conceito bastante exíguo de “últimas décadas”, tendo o crescimento médio do PIB real per capita andado entre 1985 e 2000 pelos 4%.

Apesar dos constrangimentos, Portugal pode e deve tentar gerar um crescimento estrutural superior, procurando aumentar a produtividade da economia. As políticas públicas devem contribuir para isso, e não só gerir as expectativas dos eleitores e os “dividendos” que a conjuntura, num contexto de sustentabilidade – ou mesmo de discutível conservadorismo – orçamental, for permitindo.

A importância do hiato do produto

O hiato do produto consiste na diferença entre o PIB real e o PIB potencial, que representa o valor “normal” do PIB com pleno emprego e adequada utilização dos recursos (físicos, tecnológicos). Quando o hiato do produto é positivo (negativo), o PIB está acima (abaixo) do potencial. Sobre estes conceitos abundam as divergências teóricas, e existem diversos métodos para a sua estimação.

Existe bastante dissensão sobre qual será o valor do PIB potencial de Portugal e, logo, do hiato do produto, na atual recuperação. Em parte, isto deriva da difícil medição dos efeitos de histerese associados à crise, i.e. o seu impacto além dos anos “negros”, no longo prazo, devido a perdas irrecuperáveis de recursos humanos e técnicos.

Para 2018 e 2019, o Governo, no PE, prevê que o hiato do produto se manterá em 0,7% do PIB potencial, em linha com o CFP e a metodologia europeia. (No resto do período, até 2022, mantém-se o hiato do produto aproximadamente ao mesmo nível.) Já a OCDE tem uma projeção algo diferente, de -0,8 (ainda negativo) e 0,4 (positivo). Blanchard e Portugal (2017) [2] (B&P) julgaram, pelo menos em relação a 2016, que as estimativas oficiais subestimavam bastante esta diferença, e nessa perspetiva, a economia portuguesa ainda estaria longe do potencial.

Importa lembrar que esta medida é central para qualquer interpretação sobre a política orçamental. A um determinado nível de receita, despesa e saldo orçamental pode corresponder, em função do hiato do produto, uma política contracionista ou expansionista, se daí derivar um saldo ajustado do ciclo positivo ou negativo, e contra-cíclica (assumindo um hiato do produto positivo e, portanto, que a economia está em expansão) ou pró-cíclica (se negativo e, portanto, em “recessão”). Por princípio, a política orçamental deve ser sempre que possível contra-cíclica, moderando as flutuações do ciclo económico.

Este é o fundamento teórico básico, correcto, das regras europeias construídas em torno do saldo estrutural. Assim, em grande medida, a posição oficial quanto à necessidade de uma política orçamental bastante restritiva deriva de uma interpretação do atual momento da economia portuguesa como de uma expansão assinalável, patente no cálculo de um hiato do produto persistentemente positivo. [3]

Conservadorismo contraproducente?

“Um aumento do excedente orçamental ajustado do ciclo de, digamos, 1% provavelmente fará decrescer a procura interna e o produto em, no mínimo, 1%, mas reduzirá o rácio da dívida no PIB em substancialmente menos de 1% (...).”
(B&P)

A análise de B&P, que merece atenta leitura, não tinha ainda em consideração a revisão em alta substancial do crescimento real para 2017 e seguintes e, bem assim, a queda acentuada do desemprego. Porém, na versão final publicada em dezembro último, os próprios assumem que as boas notícias “não alteram o fundamental das suas recomendações de política”.

Designadamente, intuindo que a economia portuguesa está ainda abaixo do potencial, sugeriram que se evitassem políticas deflacionistas, que aumentam o peso real da dívida. Assim, uma política orçamental demasiado contracionista seria de evitar.

Dado o nível elevado da dívida pública, algum excedente é necessário, para assegurar, com uma margem de segurança, a sua estabilidade e a confiança dos mercados para a financiar confortavelmente. Mas uma estratégia de “pagar” (reduzir) a dívida tão depressa quanto humanamente possível, com muito elevados excedentes orçamentais, carece, como apontam B&P, de fundamentos teóricos claros, podendo mesmo ser contraproducente.

É que, para a evolução do rácio da dívida no PIB, é tão importante a evolução do numerador (a dívida) como a do denominador (o PIB nominal). E, portanto, uma política orçamental demasiado contracionista pode estar a contribuir muito menos para a redução da dívida do que seria desejável, reduzindo menos o seu peso real do que no contexto de uma consolidação mais soft.

Por muito que possa ter amplo apoio político – o que é certamente mais positivo do que o inverso –, o objetivo de aumento ad absurdum do saldo orçamental (estrutural) implica logicamente uma certa resignação com o baixo nível de crescimento da produtividade e do PIB potencial. Implica também não compreender que, como referem B&P, não havendo certeza sobre o real valor deste último, “a única maneira de descobrir é tentar alcançá-lo... Seria um erro primordial assumir que a economia está a operar perto do potencial”. No PE nem sequer se assume que está “perto”, mas sim bem acima do potencial.

Em consequência, a consolidação orçamental, no cenário oficial, com a perspetiva de um saldo primário de +4,5% em 2021, vai além do que exigiria uma linha “conservadora orçamental” [4]. Com o hiato do produto positivo de quase 1 p.p. do PIB potencial, tal significa um saldo primário ajustado do ciclo de 4,1% em 2021 (2,9% em 2019; 3,5% em 2020). Se, ao invés, se apontasse apenas à manutenção do equilíbrio orçamental ajustado do ciclo, poderíamos ter, em termos de saldo global, 0,4% em vez de 1,4%. Seria uma política orçamental ainda assim contracionista, com saldos primários em torno dos 3,5%, mas com uma margem suplementar da ordem dos dois mil milhões de euros em 2020 e 2021. (Claro que, com uma subida de 1 p.p. na taxa de juro implícita da dívida, essa margem desapareceria na totalidade.)

Com uma trajetória mais branda, a redução do rácio da dívida no PIB seria marginalmente inferior. Essa diferença não faria qualquer diferença no plano da credibilidade externa. Já o aproveitamento dessa margem para investir em reformas estruturais ambiciosas poderia fazer. O objetivo de um excedente estrutural excessivo obvia ao papel do setor público (e da política orçamental) na promoção dos aumentos de produtividade através de “reformas estruturais” (mais eficazes em momentos de bonança do que durante crises [5]).

Objetivo: produtividade

“A produtividade, e o seu crescimento, importam muito por si só, primariamente porque determinam a evolução dos padrões de vida, mas também porque um crescimento mais elevado da produtividade e, por consequência, do produto potencial, torna mais fácil a redução de rácios da dívida pública e privada muito elevados. Os desvios entre a produtividade de Portugal e do resto da Europa estão bem documentados e são impressionantes.”
(B&P)

Considerar que os excedentes significativos são exagerados não significa que o que se pretende é “distribuir”.

Defendemos em [6], lançado a semana passada, um cenário em que as despesas com o pessoal crescem, em termos reais, um pouco mais do que no PE, alocando mais alguns recursos a essa rubrica além do que implicaria a simples manutenção do poder de compra desses salários.

Uma aplicação possível desses recursos é, de facto, apenas “aumentar” e “descongelar”. Outra é financiar uma verdadeira reforma do emprego público – inseparável da necessária “transição de uma lógica burocrática para uma lógica de serviço” [7] no Estado. Uma reforma que permita, como há semanas defendia a presidente do CFP [8], criar incentivos à formação e bom desempenho e atrair mais profissionais qualificados. E que permita, por um lado, dar incentivos adequados à aposentação antecipada se tal promover a eficiência dos serviços, e assim contrariar a sistemática sobrestimação das saídas por aposentação (ver [6], cap. 5) e, por outro lado, aumentar o número de efetivos, diminuindo o recurso a expedientes de contratação temporária ou outsourcing, em setores carenciados, como a Saúde, onde aqueles abundam.

Basta pensar, por exemplo, no que implica o envelhecimento da população para percebermos como as necessidades de efetivos se podem alterar rapidamente (ex. mais na Saúde e menos na Educação), sendo necessária uma flexibilidade para os gerir que atualmente não existe. [9]

A manutenção e melhoria da qualidade de infraestruturas e serviços públicos contribui indiretamente para o ambiente de negócios e para a melhoria da produtividade. Urge também contribuir para a remoção de barreiras administrativas ao crescimento. Para o Executive Opinion Survey do Fórum Económico Mundial, a “ineficiência da burocracia pública” é o fator mais problemático para os negócios em Portugal. Isto sugere que os melhores esforços da equipa da Modernização serão pouco para, sem recursos, fazer face à dimensão dos desafios que enfrentam.

Trata-se de exemplos de uma orientação geral: os verbos “cortar” e “conter” devem dar lugar a “controlar” e “reformar”. [10]

Cumprir compromissos não chega

Que Portugal se tem de “preparar para o futuro”, como avisava o ministro na semana passada, é ponto assente. Que “cumprir compromissos” e “gerar confiança” sejam suficientes para o fazer, não. Não se questiona a indispensabilidade do equilíbrio orçamental e da sustentabilidade da dívida, discute-se sim a necessidade e eficácia de uma estratégia “conservadora” que vai muito além desses objetivos.

Há tempos, nesta mesma coluna, Pedro Pita Barros [11], à imagem de B&P, ditava a importância de fixar o crescimento da produtividade como principal bússola orientadora das políticas públicas. Por maioria de razão, tal aplica-se também à política orçamental. Assegurar a manutenção e aumento sustentáveis dos padrões de vida da população portuguesa passa não só pela gestão rigorosa das finanças públicas, mas também por utilizar o espaço orçamental quando ele existe: não para acelerar o crescimento imediato, mas sim para almejar uma trajetória de crescimento mais robusta no médio e longo prazo.

Se passa pela iniciativa privada conseguir melhorar o perfil de especialização e, por conseguinte, a produtividade da economia, também os poderes públicos têm de conseguir derrubar barreiras ao crescimento e tornar o Estado mais eficiente. Uma política orçamental excessivamente conservadora em 2020-22 não contribuirá para tal, pelo contrário.

Cavar trincheiras mais fundo, com medo da crise que virá, só nos deixará submersos sob uma camada de lama mais espessa ainda, quando chegar.

Nota final

Importa ressalvar que trajetórias menos “conservadoras” podem não permitir assegurar o cumprimento das regras relativas ao Objetivo de Médio Prazo (OMP) fixado para Portugal num excedente estrutural de 0,25%. As orientações para o cálculo deste OMP derivam da mesma filosofia, ou seja, de que dado o nível elevado da dívida pública, há que proceder ao seu “corte” acelerado via elevados excedentes primários. Assim, a apresentação de um Programa de Estabilidade tão conservador justifica-se inteiramente se, e só se, fizer parte de uma estratégia para “conquistar” o favor da Comissão tendo em vista a revisão em baixa do OMP, que deve ser um desígnio nacional.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

[1] “A credibilidade da política económica, 2017”, PÚBLICO, 9 de abril
[2] “Boom, slump, sudden stops, recovery, and policy options. Portugal and the Euro”, Portuguese Economic Journal, 16: 149–168
[3] Há apenas dois anos, o próprio Governo, na Caixa 1 do PE 2016-2020, alertava para as dificuldades associadas à medição do hiato do produto e as respetivas consequências orçamentais. Sobre isto vd. Valença, H. L. (2015), IPP Policy Paper 4, disponível em ipp-jcs.org
[4] Sarmento, J. M. (2017), “Dívida pública: os 90% são os novos 60%”, Eco, 7 de agosto, onde se defende um objetivo para o excedente primário de 4%
[5] FMI (2017). "Labor and Product Market Reforms in Advanced Economies”, Staff Discussion Notes No. 17/03
[6] Pereira, P. T., Cabral, R., Morais, L. T. e Vicente, J. A. (2018), Uma estratégia orçamental sustentável para Portugal, Coimbra: Almedina
[7] Pina e Cunha, M. e Rego, A. (2014), “Mais mudança com menos mudanças: Notas sobre a reforma do Estado e o paradoxo da mudança” in Pereira, P. T. e Marques, V. S. (eds.) Afirmar o futuro: políticas públicas para Portugal – vol. 1, Lisboa: F. C. Gulbenkian
[8] Entrevista à Agência Lusa, 25 de março de 2018
[9] Argumenta-se que é este o principal desafio no médio e longo prazo em FMI (2017), Portugal – Selected Issues, Country Report no. 17/279, p. 24
[10] Refira-se que, na Caixa 1 do PE, é reconhecida a persistência de vários dos bloqueios estruturais da economia referidos
[11] “O que queremos?”, PÚBLICO, 28 de agosto de 2017

O Institute of Public Policy (IPP) é um think tank académico, independente e apartidário. As opiniões aqui expressas vinculam somente os autores e não refletem necessariamente as posições do IPP, da Universidade de Lisboa, ou de qualquer outra instituição

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