Douro, uma história de Portugal

A teia do Estado asfixia tudo e todos e o laxismo cínico e interesseiro de muitos empresários faz o resto.

Já que o Douro é tratado por Portugal como uma colónia de onde se extraem riquezas e onde se abafam os problemas, talvez não fosse má ideia exigir aos colonizadores competência e zelo na forma como a exploram. Quando a região que cria metade das exportações do vinho português continua a ser gerida com as mesmas regras que o Estado Novo inventou em 1932 está quase tudo dito. A legislação que regula o Douro foi pensada pelo salazarismo para um quadro em que havia apenas um vinho (o Porto), hoje há dois vinhos (o Porto e os DOC Douro) e, apesar dos fenómenos de canibalização de um vinho pelo outro, do empobrecimento continuado ou do barateio escandaloso não há um ministro, um secretário de Estado, um autarca, um presidente de uma instância regional que bata com a porta ou a abra para mostrar como o rei vai nu. O Douro é uma história de Portugal porque o alheamento do poder central face ao mundo dos vivos, o desperdício dos recursos, o desmazelo com que os problemas são encarados, a negligência com que se encara o futuro encontram lá a sua mais profunda e solene expressão.

Custa encontrar uma ponta para desfilar o novelo absurdo que estrangula uma das mais ricas e mais exportadoras regiões agrárias do país. Do princípio ao fim do fio será no entanto fácil encontrar essa proverbial propensão do país para viver habitualmente, sem ondas, sem incómodos que as mudanças implicam - pelo menos enquanto a coisa vai dando, enquanto a floresta não arde ou a bancarrota não bate à porta. O Douro é uma boa história deste Portugal perdulário e condescendente porque se resigna ao que foi e é em vez de se projectar e de se reflectir sobre o que pode ser. Poucas regiões mundiais de vinho são assim tão belas, nenhuma tem nas suas fronteiras duas áreas classificadas na lista do Património Mundial da Unesco, raras registam um rol de tantos vinhos pontuados com 100 pontos em 100 nas mais prestigiadas revistas de vinho do Mundo, dificilmente se encontra um vinhedo que é capaz de produzir em simultâneo dois vinhos de classe mundial – o Douro e o Porto. Mas, ainda assim, o Douro é a das regiões que mais população perde. É a quarta região do país onde o rendimento per capita é mais baixo (71% da média nacional). É um testemunho vivo de um país perdulário, relapso e displicente.

O modelo de governação económica da sua vinha é hoje um anacronismo absurdo que só sobrevive à custa do interesse de uns poucos e da óbvia demissão do Estado. A herança salazarista que resistiu à democratização e à Europa era válida quando no Douro se fazia apenas o vinho do Porto, um bem público que o Estado se empenhou em proteger criando uma regulamentação rigorosa que fixava áreas de produção, categorias de produção, quantidades a produzir e preços a praticar. Mas a modernidade abriu uma outra porta, o DOC Douro nasceu entretanto e hoje já representa metade do volume de produção do vinho do Porto. Mas se o mundo mudou e o Douro mudou, as regras do Estado Novo continuam na mesma. O que dá origem a uma cacofonia que ameaça a sustentabilidade da região a prazo. Porque se o preço fixado para as compras de uvas para vinho do Porto ronda 1.20 euros o quilo, as uvas para o DOC Douro vendem-se a menos de 40 cêntimos.

A esquizofrenia de uma região que vende uvas da mesma vinha a preços diferentes e de acordo com regras diferentes, que permite a coexistência no mesmo lugar do mercado livre e do mercado regulado é iníqua e perversa. Os lavradores que remuneram os seus custos e os seus rendimentos com as vendas de uvas para o vinho do Porto, permitem-se depois a escoar o vinho que sobra para os DOC Douro a preços ridículos, quase sempre abaixo dos custos de produção. Como a formação dos preços no mercado livre depende da qualidade, muitos agricultores usam as suas melhores uvas para DOC Douro, e vendem as piores para o vinho do Porto a preços quatro ou cinco vezes acima. Pior, como o preço do DOC Douro está muito degradado, há produtores e empresas que se permitem a vender reservas a dois euros ou menos nos supermercados. Quando uma região marcada por uma produtividade inferior à média nacional chega aqui, o caos está para breve.

E, infelizmente, pode estar. Os bons produtores e as boas empresas sofrem uma concorrência de preços que degrada a imagem do Douro e lhe turva o futuro. Com as vendas do vinho do Porto a caírem lenta mas inexoravelmente, o admirável mundo novo do vale, o DOC Douro, pode estar a ser corroído pelo facilitismo e pela negligência. Mas, paradoxalmente, exceptuando algumas empresas como a Taylor’s ou o grupo Symington, ninguém parece preocupado. O Douro que resiste não tem voz, nem autarcas, nem instâncias regionais que o defendam. O Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto é um organismo tutelado por Lisboa que se limita a deixar o rio correr, evitando fazer ondas. E, dividido entre as empresas que ganham muito dinheiro com o DOC Douro barato e as que insistem num posicionamento superior da região, o sector exportador não se entende – está numa situação de tal anomia que o Governo se arroga a tirar milhões de euros do instituto destinados à promoção sem que ninguém se preocupe por aí além.

Na história do Douro, o Estado sempre interveio quando o interesse público estava em causa. O que, para sua desgraça, geralmente aconteceu com ditadores e com ditaduras. Hoje, não intervém porque, como não há fogo na vinha nem protestos na rua, o que conta é o velho “saber durar”, essa estratégia manhosa que consiste na dissimulação, se baseia na cobardia e se alimenta do alheamento. O Douro dos grandes vinhos, do património, da viticultura heróica que faz algumas das mais belas paisagens vinhateiras do mundo, continua a ser uma colónia distante que dá o que dá e chega o que dá desde que não dê problemas. É um osso para roer lentamente. Essa é a causa da sua anomia, da sua pobreza, do seu envelhecimento, a consequência do estatuto de colónia a que o país votou o vale.

Tinha de ser assim? Claro que não. O Douro produz mais de metade da hidroelectricidade do país e só depois de destruir o vale do Tua é que a EDP se dignou distribuir umas migalhas na região – ao contrário do que a Endesa e a Iberdrola fazem no Douro espanhol. Os barcos levam centenas de milhares de turistas vale acima, mas pagam uma bagatela pelo uso do canal e fecham o seu negócio aos locais. E o vinho, a grande marca da economia e da glória da região podia revelar um dinamismo e mostrar uma base de sustentação que lhe perspectivasse outro futuro. Nada disso acontece, porque o país é o que é. A teia do Estado asfixia tudo e todos e o laxismo cínico e interesseiro de muitos empresários faz o resto. Pobre país que assim trata um dos seus tesouros.  

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