Papel do fisco no “apagão” dos offshores continua por apurar

Governo pediu esclarecimentos em Junho, mas não concretiza o que está o fisco a fazer para avaliar responsabilidades internas na omissão de 10.000 milhões. Inquérito do Ministério Público sem arguidos até agora.

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Em Março de 2017, Helena Borges mostrava “enorme interesse” em ver o caso esclarecido Enric Vives-Rubio

Mais de um ano depois de ser detectado no fisco o “apagão” de dados relativo a 10.000 milhões de euros de transferências para offshore, é uma incógnita o que está a ser feito na Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para esclarecer o caso internamente e apurar a eventual existência de responsabilidades dos serviços, algo que leva os representantes dos funcionários da instituição, ouvidos pelo PÚBLICO, a condenar o silêncio e a demora. O Governo, que há sete meses pediu mais esclarecimentos ao fisco, nada diz agora sobre os passos percorridos pela instituição liderada por Helena Borges. Até agora, não há responsabilidades assumidas.

Assim que a 23 de Junho de 2017 a Inspecção-geral de Finanças (IGF) concluiu uma auditoria considerando “extremamente improvável” que o problema informático se devesse a uma “intervenção humana deliberada”, o então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, ordenou que a autoridade tributária esclarecesse uma série de questões ausentes do relatório da IGF, por considerar que faltavam “esclarecer aspectos relevantes para a descoberta da verdade”. Ficou aberta a porta para que o fisco avançasse com novas perícias informáticas e pudesse contratar serviços externos para tentar recuperar dados em falta. Já passaram sete meses sem haver qualquer balanço público de um caso identificado internamente desde finais de Outubro/princípios de Novembro de 2016.

O Ministério das Finanças não deu qualquer resposta às sucessivas perguntas colocadas pelo PÚBLICO em Junho, Julho, Setembro e Dezembro passados. Perante os dois últimos pedidos, onde se voltava a perguntar se o fisco abrira entretanto algum inquérito interno e onde eram remetidas perguntas concretas sobre decisões e procedimentos do fisco, o actual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, remeteu-se ao silêncio.

Apesar dos sucessivos contactos junto do gabinete de imprensa do ministério, o governante não esclarece se as orientações do despacho estão a ser cumpridas ou se eventualmente foi decidido algum compasso de espera até estar concluído o inquérito a correr no Ministério Público, aberto já depois do despacho de Rocha Andrade. Um silêncio que contrasta com a posição assumida a 7 de Março de 2017 pela directora-geral da AT, Helena Borges, no Parlamento: “Olharemos com atenção para o que se terá passado e com um enorme interesse em ver a questão rapidamente esclarecida, porque, para nós, é muito importante que retomemos a normalidade”.

Em causa no caso do “apagão” fiscal estão anomalias encontradas no sistema de controlo das transferências para offshore. As falhas foram reveladas em Fevereiro de 2017 pelo PÚBLICO, quando o fisco publicou estatísticas com valores muito superiores aos montantes divulgados anteriormente. Os números tinham sido corrigidos semanas antes. As discrepâncias estavam identificadas internamente há alguns meses – e por isso desde a identificação do erro já passou mais de um ano.

Na versão oficial contada no relatório da IGF, o problema foi detectado a 31 de Outubro de 2016. Depois de a Área da Inspecção Tributária verificar que algo não batia certo nos dados que tinha em mãos, a Área dos Sistemas de Informação confirma a 2 de Novembro de 2016 que uma parte da informação contida em 20 declarações submetidas pelos bancos no Portal das Finanças ao longo de vários anos não ficará registada no sistema central. Um erro que impediu temporariamente os inspectores tributários de conhecerem alguma informação bancária relativa a transferências realizadas de 2011 a 2014, num total de 10.000 milhões de euros. Deste valor, sabe o PÚBLICO, 7917 milhões de euros (80%) correspondem a fluxos de dinheiro enviados a partir de contas sediadas no BES (em 2012, 2013 e 2014).

Os elementos recolhidos sobre o caso começaram por ser analisados no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), onde se investiga a criminalidade altamente organizada ou de especial complexidade, e acabaram por dar origem a um inquérito aberto em Agosto no DIAP de Lisboa, até agora sem arguidos constituídos, segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR).

Os logs em falta

As explicações do Ministério das Finanças à direcção do fisco foram pedidas a 27 de Junho quando Rocha Andrade, então na equipa de Centeno, recebe o relatório da IGF e lança críticas públicas ao resultado da auditoria. Refere não terem sido reproduzidas “informaticamente as circunstâncias em que o problema informático surgiu”, nem ter sido confirmado se e quem poderá ter alterado “por dolo ou negligência” a parametrização da tecnologia usada para processar os dados, nem estar explicado o facto de o erro afectar “especialmente algumas instituições” financeiras e manifestar-se “de forma diversa” ao longo do tempo.

Há procedimentos por esclarecer não apenas relativamente à origem e aos contornos das falhas, mas também em relação à actuação do fisco a partir do momento em que o erro foi descoberto.

Uma das questões que não levantou dúvidas à IGF foi o facto de a autoridade tributária só dispor dos ficheiros de log (ficheiros de texto gerados durante a execução da aplicação informática) relativamente a seis das 20 declarações onde se detectaram os erros – das que foram submetidas no Portal das Finanças de 9 de Outubro de 2015 em diante, mas não das que foram enviadas antes dessa data, incluindo uma declaração submetida três dias antes, a 6 de Outubro. A IGF sustenta que a administração fiscal só guarda os registos desses processos automatizados durante 18 meses.

É preciso ter presente que o “apagão” foi reconhecido na área informática do fisco a 2 de Novembro de 2016 (nessa data, em seis declarações; e “mais tarde” num total de 20, segundo a análise do Instituto Superior Técnico (IST) que acompanha o relatório da IGF). Ora, quando os problemas foram detectados na AT ainda não tinham passado 18 meses relativamente a mais declarações do que aquelas seis em relação às quais há logs disponíveis.

Se a partir de Novembro de 2016 se recuar no tempo 18 meses – o prazo de conservação dos logs – isso permite chegar a Maio de 2015. No entanto, só existem logs relativamente às declarações enviadas a partir de 9 de Outubro de 2015. Para que isso acontecesse, significava que o ponto de referência usado pela AT/IGF foi o início do mês de Abril de 2017, uma altura em que já tinham passado três meses desde que a auditoria em curso e cinco meses desde o momento em que foi descoberto o “apagão”. Ao PÚBLICO, o Ministério das Finanças não deu qualquer resposta sobre estas matérias, não esclarecendo se foi encontrada explicação para o facto de existirem os ficheiros de log relativos a uma declaração submetida a 9 de Outubro de 2015, mas não a outra relativa a 6 de Outubro desse mesmo ano.

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Sem resposta

No despacho com orientações à AT, o anterior secretário de Estado dos Assuntos Fiscais perguntava se a eliminação dos logs correspondia ao “procedimento habitualmente seguido” no fisco e perguntava se os ficheiros em falta ainda poderiam ser recuperados através de técnicas de análise forense. E deixava outra pergunta precisa: “Considerando que a tecnologia PowerCenter foi abandonada, segundo o IST [Instituto Superior Técnico numa análise feita para a IGF], devido à dificuldade de processamento de alguns caracteres, poderá esse facto ter sido aproveitado através da marcação de transferências específicas com determinados caracteres?”.

O despacho determinava que o fisco apurasse a eventual “existência de responsabilidade dos serviços e/ou das empresas informáticas contratadas” (a multinacional Informatica, fornecedora da tecnologia PowerCenter, usada para processar as declarações, e a OpenSoft, que desenvolveu as aplicações de suporte). Internamente, à luz do que a directora-geral do fisco revelou no Parlamento, cabia à área dos Sistemas de Informação lidar com os dados de origem comunicados pelos bancos.

O presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Inspecção Tributária (APIT), Nuno Barroso, considera que “a transparência que se exige da administração pública tem de resultar em informação aos cidadãos sobre a resolução destas situações”, o que até agora, confirma, não aconteceu. Internamente, entende, é preciso conhecer as “responsabilidades”, mesmo perante um erro informático, como para ele aponta a IGF. “A informática é tratada por pessoas e, portanto, se foi essa a razão, terá de haver responsáveis”. Paulo Ralha, presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), diz não compreender a demora da AT e lamenta-se: “Parece que se assobia para o lado à espera que toda a situação passe sem se incomodar absolutamente ninguém”.

Nuno Barroso entende ainda que o Ministério das Finanças “já deveria ter dado informação” sobre os resultados do controlo dos 10.000 milhões, considerando que, passado um ano, já é tempo suficiente para a AT concluir esses procedimentos, salvo as situações que impliquem recolher dados fora do país. Informação interna sobre o que está a ser feito, afirma, não existe.

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