Passos perdido no seu labirinto

O PSD, um partido crucial, deixou de ser uma mola influente na política. Tornou-se o bombo da festa.

“Não aceitamos o ambiente de intolerância em que só se discute o futuro segundo a perspectiva do pensamento dominante”. Nesta frase, grave e grandiloquente, dita por Pedro Passos Coelho no encerramento da Universidade de Verão do PSD, cabem por inteiro os dramas da sua liderança e os fracassos da sua oposição. O que a marca não é tanto o horror do “ambiente de intolerância”, que existe e a cada passo vai dando um ar de guerra tribal à vida pública. O que a torna importante é o reconhecimento da impotência de Pedro Passos Coelho e do PSD em contrariar a “perspectiva do pensamento dominante”. Fora do poder, o principal partido da oposição admite que o domínio das palavras, das ideias ou dos projectos capazes de suscitar a atenção dos portugueses e de marcar o debate público não lhe pertence. O admirável país novo de António Costa é uma máquina oleada e à prova de bala - as sondagens confirmam-no.

Talvez seja o impulso desta impotência que leva alguns responsáveis do PSD a dizer em público o que nenhum militante social-democrata diria em privado há apenas meia dúzia de anos. Não estão apenas em causa as alarvidades de André Ventura em Loures sobre os ciganos ou sobre os imigrantes – que associa o partido ao perigo populista e xenófobo e manda às malvas o pouco que resta da doutrina personalista e humanista do velho PSD. A tolerância de Passos Coelho ao “ambiente de intolerância” em Loures é apenas o sintoma mais grave de um partido que pressente a necessidade de gritar para se fazer ouvir. Vejam-se as declarações de Paulo Rangel sobre uma alegada responsabilidade moral do Governo nas mortes de Pedrógão. Ou o tom rancoroso de Aníbal Cavaco Silva sobre os “pios” da esquerda na mesma universidade de Verão.

O PSD não domina o pensamento porque se afundou no ressentimento. Vários colunistas o disseram nos últimos dias e é a consequência dessa forma de vida que vale a pena reflectir. Porque o PSD, um partido crucial, deixou de ser uma mola influente na política. Tornou-se o bombo da festa. Este fim-de-semana, Pedro Nuno Santos lamentava ao Sol que, “ao fim destes dois anos”, o PSD “não tenha percebido nada do que está a acontecer em Portugal e continue a cometer erros”. No meio do cinismo, o novo guru da esquerda do PS tem razão. O PSD não deu conta que a aliança sagrada das esquerdas mudou radicalmente o quadro da política. Não percebeu que o “discurso dominante”, feito de facilidades e de paternalismo pagos pelos impostos, é música celestial para os portugueses. Não percebeu que o eleitorado tem a memória curta e detesta rebobinar os tempos da crise. Não percebeu que os portugueses precisavam de distensão. Que o diabo não virá enquanto a Europa crescer, o Banco Central Europeu ajudar e houver folga para redistribuir as verbas libertadas pela excepcional conjuntura da economia.   

Neste desnorte, as ciladas que António Costa a cada passo organiza são sempre um sucesso. Quando o PSD é desafiado a fazer parte de consensos em matérias como os investimentos públicos ou os fundos comunitários, bem sabemos que em causa está uma provocação. Mas, nestes apelos cínicos à responsabilidade, o PSD não se pode remeter à condição birrenta dos partidos de protesto. Tem de ir a jogo, como aliás aqui explicou João Miguel Tavares. Tem de mostrar as suas ideias e as suas prioridades. Exigindo que os consensos sobre o betão se alarguem à Saúde, à Segurança Social ou à Justiça que, como Passos Coelho disse e bem, são reformas muito mais importantes para o futuro do que a discussão sobre mais estradas ou rotundas. Ao optar pela intransigência, Passos Coelho pode convencer os militantes mais radicais, sempre dispostos a ver a política como um braço-de-ferro para homens de fala grossa e barba rija. Mas dificilmente chegará ao eleitorado flutuante que, apreciando firmeza e ideias claras, exige principalmente que os partidos se empenhem na resolução dos problemas do país.

Passos Coelho, porém, não entende que a crítica sistemática e negativa é cimento para a consolidação do “pensamento dominante”. Ao barricar-se no contra e no queixume deixa-se ficar refém do lado menos útil da sua biografia política. Cola-se ao passado e desiste do futuro. O primeiro-ministro que governou na pior conjuntura económica em muitas décadas, que geriu o ajustamento inevitável, que, melhor ou pior, manteve um rumo que acabou na saída da troika em 2014 torna-se assim presa fácil dos clichés que a esquerda lhe vai colando. Passos é um dos mais preciosos activos do PS, do Bloco e do PCP porque se tornou um alvo parado num tempo que já acabou. É fácil o “pensamento dominante” colá-lo a um putativo excesso de austeridade aplicado por ideologia ou capricho. É fácil situá-lo como autor de uma governação que, por oposição à actual, fez questão de espremer os portugueses voluntária e gratuitamente.  

Com o Bloco e o PCP a encherem com mestria o campo do poder e da oposição, o PSD devia olhar para o lado e ver como Assunção Cristas consegue temperar melhor a faceta contestatária com a faceta construtiva – ainda esta semana lá veio uma proposta para baixar o IRC. A melhor maneira de mostrar a suposta incongruência da “geringonça” seria provar que em questões essenciais como a da iniciativa privada, a do peso do Estado, a da responsabilidade fiscal ou das relações com a Europa, o PSD tem muito mais a dialogar com o PS do que o Bloco ou o PCP. E isso só se conseguria se a direita liderada pelo PSD se assumisse “como motor reformista do país”, afirmando-se como uma alternativa “na apresentação de ideias inovadoras por sector, com bons think tanks ou até um governo sombra”, como escreveu por estes dias Alexandre Homem Cristo no Observador.  

Ficando preso ao ressentimento, Pedro Passos Coelho afunda-se. Cada vez mais sozinho no PSD, a braços com escolhas duvidosas para as autárquicas, preso à imagem do neoliberal punitivo que queria erguer um Portugal novo a golpes de austeridade, carregando às costas menos-valias de um certo passado recente (com Cavaco Silva à cabeça), incapaz de articular um projecto coerente para o futuro, Passos parece perdido, abandonado e cansado. Um dia, quando a História se sobrepuser ao jornalismo, quando a propaganda sobre o passado recente se despir da emoção, talvez seja visto como o homem que salvou o país de um tormento como o da Grécia. Mas a política não se faz de profecias. Hoje, que é o que conta, Pedro Passos Coelho é um líder perdido no seu labirinto. No próximo congresso do PSD não deixará de haver quem lhe queira apontar a saída.   

 

 

 

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