As prendas de Natal da Inês e do António

Ajudar os amigos na vida pública, com dinheiro dos contribuintes, é um gesto feio. Ou é crime, ou é imoral, ou é as duas coisas em simultâneo.

Inês Pedrosa e António Guterres receberam esta semana duas prendas de Natal antecipadas, que lhe foram oferecidas pelos respectivos amigos. No caso da Inês, os seus amigos do meio cultural ofereceram-lhe uma carta aberta em defesa da sua honra, depois de ela ter sido acusada pelo Ministério Público da prática do crime de abuso de poder enquanto directora da Casa Fernando Pessoa. No caso do António, os seus amigos da Assembleia da República ofereceram-lhe o prémio Direitos Humanos 2016, no valor de 25 mil euros, apesar de ele não o poder ganhar. Sendo véspera de Natal, não queria de modo algum desvalorizar bonitos gestos de amizade. Mas gostaria, modestamente, de recordar que a amizade tem locais próprios para ser exercida. Ajudar os amigos na vida privada é um gesto bonito. Ajudar os amigos na vida pública, com dinheiro dos contribuintes, é um gesto feio. Ou é crime, ou é imoral, ou é as duas coisas em simultâneo. Seja como for, não se faz.

O caso da Inês já foi abordado há dois dias por José António Cerejo num texto exemplar intitulado “Inês Pedrosa, os seus 38 amigos e ‘um insignificante episódio burocrático’”. Cerejo sabe do que fala porque foi ele a dar a notícia, em 2014, de que Inês Pedrosa, enquanto directora da Casa Fernando Pessoa, tinha contratado um senhor com quem vivia em “união de facto” (palavras do Ministério Público) para assegurar vários serviços da instituição. Quatro meses depois, demitiu-se do cargo, invocando “projectos novos”. Agora, uma semana depois do Ministério Público apresentar a acusação, eis que 38 amigos seus – entre os quais Eduardo Lourenço, Tolentino Mendonça, Francisco José Viegas, Lídia Jorge ou Sérgio Godinho – decidiram subscrever, segundo o PÚBLICO noticiou, uma carta aberta onde afirmam que Inês Pedrosa tem sido vítima de “reiteradas incompreensões, perseguições e indiferenças”, que as notícias que têm surgido “empolam de forma absurda um insignificante episódio burocrático” e que o processo demonstra a “democracia imperfeita em que vivemos”.

Não sei qual dos signatários realmente escreveu tal prosa, mas espero que 37 das 38 pessoas a tenham subscrito sem ler. Isto só é um texto aceitável como prova de admissão na equipa de defesa do engenheiro Sócrates. Fora isso, só pode vir de um grupo de intelectuais toldados pelo espírito natalício, a confundir solidariedade privada com tomada de posição pública, e a praticar o amiguismo saloio que em tempos tanto criticaram aos Miguéis Relvas desta vida.

Infelizmente, não estão desacompanhados: no Parlamento, também um grupo de deputados confundiu a felicidade pela escolha de António Guterres como secretário-geral da ONU com a oferta de um prémio que ele não podia receber. O regulamento do prémio Direitos Humanos exige que seja atribuído ou pela actividade de uma ONG, ou pela autoria de artigos relacionados com os direitos humanos. Guterres pode ser uma óptima escolha, só que: 1) não trabalha para uma ONG; 2) não escreveu coisa alguma. Donde, não podia ter ganho. Ao ser confrontado com este facto pelo Observador, Pedro Bacelar Vasconcelos, deputado do PS e presidente da comissão responsável pela atribuição do prémio, respondeu: “Se há qualquer idiota que não concorda com a atribuição do prémio, que recorra.” Ah, a elegância! Ah, a indignação por ver posta em causa a sua bondade! Que as boas regras e as boas práticas nunca se intrometam entre um português e o seu desejo de ser bom. Um Santo Natal para todos.

 

 

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