No país dos tiroteios, o Senado continua agarrado às armas com unhas e dentes

Câmara alta do Congresso norte-americano rejeita quatro propostas para apertar controlo sobre compra e uso de armas, uma semana depois do tiroteio mais mortífero da História do país.

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Activistas a favor do controlo de armas manifestaram-se em frente à sede da NRA Alex Wong/AFP
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Erica Smegielski, filha da directora da escola de Sandy Hook, que fo morta no tiroteio de Dezembro de 2012 Alex Wong/AFP

Limitar o acesso às armas nos EUA através da lei tem sido um exercício com resultados tão tímidos que o Presidente Barack Obama chegou a dizer que sentiu vergonha de Washington, quando o Congresso rejeitou uma proposta depois do tiroteio na escola primária de Sandy Hook, onde foram mortas 20 crianças com seis e sete anos.

Os 49 mortos numa discoteca frequentada pela comunidade LGBT em Orlando, na semana passada, também não foram suficientes para se mexer nas leis – nem sequer para proibir ou dificultar a compra de armas a quem está na lista das pessoas proibidas de viajar de avião por suspeitas de ligação às várias formas de terrorismo.

Nos EUA, o governo federal pode impedir a compra de armas a pessoas condenadas por vários crimes, incluindo violência doméstica, mas não há nenhuma lei específica que impeça alguém de comprar armas por estar numa das listas sobre terrorismo (cerca de um milhão, entre pessoas suspeitas de planear atentados, proibidas de entrar em aviões ou simplesmente marcadas como possíveis alvos com interesse para investigações).

Na noite de segunda-feira, por causa do massacre com armas de fogo mais mortífero da História dos EUA, o Senado votou quatro propostas para dificultar a compra e o porte de armas, em grande parte direccionadas àquele grupo da população – duas do Partido Democrata e duas do Partido Republicano. O resultado já era esperado: as do Partido Democrata foram rejeitadas porque foram consideradas muito restritivas pelo Partido Republicano e as do Partido Republicano foram reprovadas porque foram consideradas muito permissivas pelo Partido Democrata.

O simples facto de as quatro propostas terem sido votadas já foi visto como uma pequena vitória para os defensores do reforço do controlo da compra e do uso de armas.

Em ano de eleições para a Casa Branca, a maioria do Partido Republicano no Senado queria evitar discutir o assunto, para não manter o tema das armas na actualidade e causar embaraços aos seus candidatos ao Congresso nas eleições de Novembro, em particular aos que vão defender os seus lugares em estados onde o Partido Democrata costuma ter mais votos nas eleições presidenciais. Como as eleições para a Casa Branca vão ter lugar no mesmo dia, muitos eleitores que pensam votar em Hillary Clinton poderão pensar duas vezes antes de votarem num senador ou num membro da Câmara dos Representantes do Partido Republicano, ainda que aprovem o seu trabalho.

Marcar terreno para Novembro

Em suma, as votações desta semana resumiram-se a mais uma marcação de posições – o Partido Democrata quis ter argumentos para dizer aos eleitores que o Partido Republicano não deixou passar nenhuma lei, e o Partido Republicano acusou os seus adversários de estarem a perder tempo com votações para ficarem bem na fotografia. Tudo porque ambos os partidos sabiam de antemão que nenhuma das propostas teria hipóteses de passar.

Uma delas, da autoria da senadora do Partido Democrata Dianne Feinstein, já tinha sido reprovada em Dezembro, logo após o tiroteio em San Bernardino, na Califórnia, onde um ataque do casal Rizwan Farook e Tashfeen Malik matou14 pessoas e feriu 24. Essa proposta (que foi a votos na segunda-feira com algumas alterações em relação a Dezembro) autorizava a procuradora-geral norte-americana a proibir a venda de armas e explosivos a qualquer pessoa cujo nome está numa das listas de vigilância do FBI.

Em alternativa, o senador do Partido Republicano John Cornyn apresentou uma proposta com o mesmo objectivo, mas que obrigaria o governo federal a provar em três dias que a pessoa em causa tem intenções de usar as armas compradas para cometer crimes relacionados com o terrorismo.

Ambas foram chumbadas – os Democratas disseram que estipular um prazo de três dias para provar uma ligação concreta a actividades terroristas no meio de uma lista com cerca de um milhão de nomes é irrealista e que só pode ser uma manobra dos Republicanos para garantirem a rejeição da lei; e os Republicanos disseram que um cidadão não pode perder o direito à posse de armas, consagrada na Segunda Emenda, só porque o seu nome está numa lista, para onde pode ter ido parar por erro do sistema.

As outras duas propostas (uma de cada partido) diziam respeito às inspecções ao registo criminal e a outras informações sobre as pessoas no momento em que compram armas – os background checks. Neste caso, há um buraco na lei que o Congresso também não tem mostrado vontade em tapar: se a compra for feita numa exposição temporária, através da Internet ou num negócio entre familiares, amigos ou conhecidos, essa verificação não é obrigatória.

Mais uma vez, os dois partidos dizem querer resolver o problema, mas as propostas são incompatíveis. O Partido Democrata, através do senador Christopher Murphy (o homem que liderou o filibuster na semana passada, e que provocou as votações desta semana), propôs alargar as inspecções a todas as transacções; o Partido Republicano, através do senador Charles Grassley, propôs aumentar o orçamento das agências que fazem as verificações, mas não aceita o alargamento a todas as transacções.

Nenhuma das quatro propostas teve o mínimo de 60 votos favoráveis entre os cem senadores, como era necessário para continuarem no processo legislativo, e a maioria votou de acordo com a orientação dos seus partidos. Com uma maioria de 54 senadores, e tradicionalmente menos favorável a leis mais restritivas em relação às armas, o Partido Republicano tem todo o poder para travar qualquer alteração.

O indício mais evidente de que a discussão sobre o controlo de armas é ainda mais complicada em ano de eleições é o facto de que muito poucos senadores votaram a favor de propostas do partido contrário – e os que o fizeram ou enfrentam reeleições em Novembro em estados onde o outro partido costuma ter mais votos nas presidenciais, ou são senadores com ambição de concorrerem a governadores nos próximos anos, nas mesmas condições.

Por exemplo, a senadora do Partido Republicano Kelly Ayotte e o seu colega Mark Kirk votaram a favor da proposta da Democrata Dianne Feinstein. Ayotte vai defender o seu lugar no Senado no New Hampshire (onde Obama venceu em 2008 e 2012) e Kirk enfrenta a reeleição no Illinois (onde os candidatos à Casa Branca pelo Partido Democrata vencem de forma consecutiva desde 1992). 

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