Memória de um dia feliz em tempos difíceis

Em Portugal, a opção europeia, sem ilusões e com alguma amargura, continua pelo menos a ser amplamente maioritária.

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A celebração não foi propriamente no dia 1 de Janeiro de 1986, quando Portugal passou a ser membro “de pleno direito”, como se dizia na altura para matar à partida qualquer dúvida que pudesse restar. Já tinha sido nessa manhã de Junho de 1985 em que a luz de Lisboa se reflectia nas pedras do velho mosteiro e velas brancas das Caravelas simbolizavam a longa e penosa história de um velho país europeu regressado à Europa. Foi esse o dia do orgulho de sermos finalmente europeus, “da verdadeira Europa”, como dizia Eduardo Lourenço, aquela que estava para lá dos Pireneus, quando doze chefes de Estado e de Governo assinaram o Tratado de Adesão de Portugal, como o décimo-primeiro membro da então Comunidade Europeia, para repetirem o gesto algumas horas depois em Madrid. Esse foi o dia em que o país ganhou uma batalha negocial longa de oito anos, com momentos de esperança e de desespero. A Europa foi a opção estratégica do país que a democracia tornou possível. Para Mário Soares, a ausência mais presente ontem nos claustros dos Jerónimos e o principal obreiro do nosso destino europeu, a Europa era, em primeiro lugar, a consolidação da democracia liberal e ocidental. Nem sempre essa opção estratégia foi óbvia para toda a gente, como hoje parece ter sido. Acabou por prevalecer, assente numa espécie de “programa comum “ dos dois grandes partidos da democracia e como passaporte para o desenvolvimento que nos aproximaria do bem-estar e da riqueza dos nossos parceiros europeus. Politicamente, o momento era já de ruptura. Ramalho Eanes preparava-se para demitir o Governo do bloco central que durante três anos levou a cabo um duro programa de austeridade para equilibrar as contas públicas e concluir a adesão. Cavaco Silva já era o líder do PSD com um simples objectivo: acabar com a aliança PS-PSD, vencer eleições e escolher um candidato presidencial que garantisse a derrota definitiva de Soares. Criticou o Tratado e anunciou que reabriria as negociações. Quando chegou ao poder, poucos meses depois, a Europa acabou por revelar-se uma bênção. Ontem, nos Jerónimos, convidado pelo primeiro-ministro a discursar na cerimónia dos 30 anos, o Presidente já só falou para retocar a história da sua vida política, enumerando exaustivamente o que ele próprio fez pela Europa. Teve pelo menos o mérito de evitar a crispação e o ressabiamento que marcaram os seus últimos meses em Belém.

Coube a António Guterres (presente nos Jerónimos) colocar Portugal na primeira linha do Conselho Europeu, representando um país que via a Europa muito para além da “mão estendida”. O sucesso a nossa aventura europeia foi tão real (e ontem todos os oradores foram unânimes nesse reconhecimento) que na última década Durão Barroso presidiu à Comissão Europeia e Vítor Constâncio é ainda o vice-presidente do BCE. Mas ontem, Barroso, igualmente orador convidado pelo primeiro-ministro, não conseguiu descolar do discurso justificativo da sua incapacidade de contrariar o caminho da irrelevância da Comissão face ao poder dos Governos. Disse o que sempre dissera em Bruxelas: que eram “os profissionais do pessimismo” os principais responsáveis por uma crise “conjuntural” que não era nem mais nem menos do que as outras através das quais a Europa foi sempre avançando. Recusou a ideia de que a Europa corresse o risco do declínio e da irrelevância, retomando uma obsessão que cultivou no seu segundo mandato, quando decretou que a União era, pelo contrário, uma potência emergente. A seu favor, há que reconhecer que presidiu a uma Comissão que teve de enfrentar a partir de 2009 a pior crise de sempre da União Europeia (embora ele diga que não), no mesmo ano em que o Tratado de Lisboa reduzia os poderes de Bruxelas a favor do Conselho Europeu e do Parlamento Europeu, abrindo as portas ao crescente peso dos governos (ou melhor, de alguns) nas decisões europeias. Não teve a coragem de enfrentar Berlim no seu momento de “unilateralismo”. Deixou que a Comissão perdesse credibilidade.

Finalmente, António Costa, o anfitrião da cerimónia, fez o discurso que deveria ter feito. Lembrou o que significou para nós a adesão à Comunidade, transformando radicalmente um país pobre e periférico, que conseguiu combater a sua condição graças à determinação de estar presente no centro político da Europa. Lembrou as palavras de Soares naquele mesmo claustro e o seu combate incansável. Mas também falou da crise enorme que o projecto europeu atravessa: dos refugiados ao terrorismo, das forças nacionalistas à falta de confiança dos cidadãos. E, sobretudo, lembrou que uma Europa do pensamento único nunca poderá funcionar, reclamando a necessidade de criar alternativas, não apenas a nível nacional mas também à escala europeia. Não foi demasiado longe mas disse o suficiente. Enumerou todos os seus antecessores que foram fundamentais nos últimos trinta anos: Cavaco Silva, Durão Barroso, António Guterres e José Sócrates. Nem Cavaco nem Barroso pronunciaram qualquer outro nome, que não fosse indirectamente o próprio.

Feitas as contas, acabou por ser uma cerimónia digna num momento em que o futuro europeu é ainda uma incógnita, mas foi também a reafirmação do nosso destino europeu, para além de todas as crises e de todas as contingências, por todos os oradores. Como referiu o primeiro-ministro, reconquistar a confiança dos europeus na Europa é talvez a tarefa mais urgente e provavelmente a mais difícil. Em Portugal, a opção europeia, sem ilusões e com alguma amargura, continua pelo menos a ser amplamente maioritária.

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