A Europa constrói-se em rede: de Portugal à Finlândia, um mercado único de electricidade

A partir de hoje, o mercado eléctrico português fica ancorado num bloco de 17 países que representam cerca de 75% do consumo de electricidade da UE.

"Eppur si muove..." foram as palavras que Galileu murmurou quando foi condenado por heresia, na sequência da publicação do livro sobre "Os máximos sistemas do mundo".

Quando cresce o número dos que consideram uma heresia colocar a UE no centro do sistema político, preferindo iludir-se e iludir-nos com o dogma da centralidade do Estado-nação, vale a pena chamar a atenção para um pequeno passo na construção do mercado europeu da electricidade. Parafraseando Neil Armstrong: 13 de Maio é um pequeno passo para a Europa, mas um salto gigante para Portugal. A partir de hoje, o mercado eléctrico português fica ancorado num bloco de 17 países que representam cerca de 75% do consumo de electricidade da UE; as ofertas de compra e de venda dos agentes portugueses passam a ser automaticamente combinadas com as ofertas de 16 países e não apenas com as ofertas dos agentes do país vizinho; vendedores e compradores portugueses passam a ter acesso automático ao maior mercado de electricidade do mundo e ganham acesso à interligação entre Espanha e França em pé de igualdade com os agentes desses países.

Os cépticos dirão que a capacidade de interligação entre a Península Ibérica e o resto do continente é reduzida, o que limita o impacto económico deste “acoplamento dos mercados”. Têm razão no curto prazo, mas não têm razão no longo prazo, em que a capacidade de interligação aumenta (o actual ministro da Energia já obteve nesta matéria assinaláveis sucessos), e não têm razão quanto à importância deste acontecimento, tanto no quadro restrito do mercado da energia como no quadro geral da construção europeia.

Quando a primeira directiva do mercado interno da electricidade entrou em vigor, em Fevereiro de 1997, apenas havia mercados organizados na Inglaterra/País de Gales e Noruega/Suécia e os operadores das redes de transporte continuavam a defender a inviabilidade técnica e económica do comércio transfronteiriço de energia eléctrica. Foi graças à acção concertada dos reguladores de Portugal, Espanha e Itália, com o apoio da Comissão Europeia, que o quadro regulamentar começou a ser desenvolvido em 1998 (o leitor mais curioso poderá consultar o artigo publicado no No. 2 da Oil & Gas Law and Taxation Review).

Em 2001, os Governos de Portugal e Espanha acordaram a criação do mercado ibérico de electricidade. Infelizmente, à inteligência dos responsáveis da época, que tinham obtido o acordo do Governo espanhol para o estabelecimento em Lisboa do operador do mercado ibérico, seguiu-se um período de inacção e, em 2007, a adesão de facto de Portugal ao mercado espanhol, cujo funcionamento era, a vários títulos, deficiente.

Entretanto, foram surgindo na UE vários mercados regionais. De um ponto de vista técnico e económico, tudo recomendava e nada impedia a criação de um operador único de mercado em que todos os agentes, de todos os Estados-membros, pudessem participar directa e simultaneamente. O que é economicamente desejável nem sempre é, porém, politicamente realizável – as vaidades nacionais dos pequenos poderes instalados sobrepõem-se, sob a capa hipócrita da “soberania nacional” e da “segurança de abastecimento”, ao interesse público, evitando-se assim, na realidade, a devolução do “poder” aos consumidores.

Graças à iniciativa de alguns agentes e operadores de mercado e de rede, começaram a integrar-se os mercados “de baixo para cima”. Sem beliscar a identidade corporativa dos operadores e sem nova legislação, foram-se implementando algoritmos de acoplamento dos mercados regionais. Na prática, é como se existisse um mercado único, limitado apenas pelas restrições de transporte.

Este processo franco-alemão foi-se alargando a vários países e chega hoje à Península Ibérica. A dependência de facto dos agentes portugueses relativamente ao operador de mercado e ao legislador espanhol será relativizada. A governança do novo sistema europeu não é menos complexa do que a governança do anterior sistema ibérico – mas é mais previsível, mais transparente, mais respeitosa dos argumentos técnicos e económicos e menos sensível a pressões políticas de governos nacionais. Este processo conduz a um progresso notável em termos de eficiência económica. Representa também, o que merece ser assinalado e apontado como exemplo, uma forma original, participativa e eficaz de construção do mercado interno, colmatando a falha de vontade política em implementar realmente o que foi politicamente acordado e juridicamente consubstanciado em normas europeias.

Os eurocépticos criticarão este processo, apresentando-o como exemplo daquilo que designam como a deriva tecnocrática subjacente à construção europeia. Creio que se trata, pelo contrário, de uma responsável manifestação de sentido de interesse público. Estão de parabéns aquelas e aqueles dirigentes da REN e do OMIP que com grande inteligência e persistência souberam construir a solução que melhor serve os interesses dos consumidores e dos produtores portugueses de energia eléctrica. É porque ousaram não poucas vezes enfrentar a indiferença, a indigência e a prepotência de pequenos e grandes inquisidores, que o mercado português de electricidade recupera hoje a dignidade perdida em 2007 e passa a respirar ao ritmo europeu. É graças a comportamentos deste tipo que a Europa progride num mundo onde são cada vez mais e mais intensas as interacções com outros sistemas.

Aos cépticos que não acreditam na capacidade de invenção e na possibilidade de construção da Europa, vendo apenas imobilismo e refluxo, respondemos hoje com Galileu: “Eppur si muove...”

Ex-presidente da ERSE, presidente da Newes

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