Bolseiros apresentam um exemplo sobre “insustentável precariedade na ciência”

Núcleo que reúne trabalhadores precários da Ciência da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa promoveu um inquérito que alerta para a posição precária dos investigadores. A direcção da faculdade inicia esta sexta-feira um processo negocial para a regularização dos vínculos precários.

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Rui Gaudêncio/Arquivo

O Núcleo Bolseiros Investigadores de Ciência da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa (UNL) promoveu um inquérito nesta instituição que concluiu que por cada docente de carreira há mais do triplo de trabalhadores precários. A direcção da faculdade considera, no entanto, que neste trabalho há imprecisões, misturando-se categorias distintas, que resultam numa “análise enviesada da complexidade da realidade da FCSH”. Esta semana, quando a FCSH se prepara para iniciar um processo negocial para regularizar os vínculos precários, o núcleo divulgou uma carta aberta endereçada ao director da faculdade, Francisco Caramelo.

Na carta aberta enviada esta semana, o núcleo de bolseiros da FCSH da UNL lembra o director que esta faculdade recorre a diariamente a centenas de trabalhadores que cumprem há vários anos funções de investigação e docência, coordenação, gestão e comunicação de ciência e que “permanecem com vínculos precários, enquadrados ad eternum em regime de formação, sem acesso a protecção social e na doença, com amplas limitações à participação nos órgãos de gestão”. “O actual Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP) constitui uma oportunidade única” para regularizar esta situação, defendem no documento em que pedem a Francisco Caramelo que “avalie apenas se os trabalhadores cumprem funções de natureza permanente”. Um apelo que surge, justificam, a propósito do início, esta sexta-feira, das reuniões da direcção da FCSH da UNL com a Comissão de Avaliação Bipartida da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior no âmbito do PREVPAP.

Antes desta carta aberta, o núcleo de bolseiros da FCSH tinha já divulgado os resultados de um inquérito que alertava para a precariedade na instituição. Uma faculdade, um inquérito, 612 respostas válidas que incluem profissionais em várias categorias e fases da carreira, como investigadores com bolsa, com contrato a termo, docentes convidados e leitores. Os participantes neste trabalho foram divididos em grupos para a análise de dados.

No entanto, no que diz respeito às 269 respostas válidas de investigadores com bolsa, o inquérito nota que 39% são bolsas de doutoramento, 31% bolsas de investigação para licenciados e mestres e bolsas de iniciação à investigação científica e 29% bolsas de pós-doutoramento. Ou seja, o núcleo de bolseiros considera que os investigadores com bolsas de formação de doutoramento ou de iniciação à investigação científica são trabalhadores precários. “Não são só bolsas de formação. Isso é o que o Governo diz e a faculdade também. Mas quando é preciso apresentar os índices de produtividade da instituição já são considerados como trabalhadores”, reage Ana Ferreira, um dos elementos do núcleo que promoveu este inquérito.

A verdade é que nas conclusões sobre a situação de precariedade todos estes investigadores com bolsa são considerados como precários. “Todos eles são trabalhadores que têm algum tipo de ligação contratual com a instituição”, justifica Ana Ferreira. E estes resultados, dizem os bolseiros, são só um exemplo de uma realidade que será transversal a outras instituições de ensino superior.

“Na FCSH [da UNL] há um total de 508 investigadores com bolsa, 23 investigadores com contratos a termo (maioritariamente Investigadores FCT) e 84 docentes convidados e leitores em 2016. Na mesma instituição temos dois investigadores de carreira e 192 professores de carreira. Estes dados situam a dimensão da precariedade: por cada docente ou investigador de carreira há mais do triplo de trabalhadores precários”, refere o comunicado de imprensa sobre o estudo.

Depois, explicam, o grupo de 326 investigadores e gestores de ciência com bolsa e Investigadores FCT é maioritariamente composto por mulheres (65%), com uma idade média de 37 anos. Ana Ferreira sublinha ainda que o percurso destes trabalhadores e muito semelhante e resume-se a uma sucessão de bolsas, umas atrás das outras: 47% teve pelo menos três bolsas, 56% foi remunerado com bolsas durante mais de cinco anos e outros 17% durante mais de nove anos. Mas uma das conclusões mais preocupantes, nota, é que trabalhadores precários estão numa situação “desesperante” e sob a ameaça de, em breve, ficarem desempregados e sem qualquer tipo de apoio porque muitos não têm direito a aceder a subsídio. Os dados deste inquérito dizem que “42% destes trabalhadores precários têm filhos e 69% ficarão sem remuneração entre o final de 2017 e 2018”, sublinha Ana Ferreira.

Desemprego sem apoio

“Os actuais números de precariedade na ciência a par do crescente número de doutorados – 20.195 novos doutores entre 2006 e 2015 em Portugal, com cerca de três mil novos doutores por ano actualmente – assumem uma dimensão que não pode continuar invisível”, argumentam estes bolseiros no comunicado, avisando ainda que os três mil contratos para doutorados anunciados no Orçamento do Estado para 2018 “apenas abarcarão uma pequena parte de uma população com dimensão crescente”. “Estes contratos são uma oportunidade para algumas destas pessoas, mas não chega para estancar o problema que se criou nas últimas décadas”, reforça Ana Ferreira.

No inquérito que quer mostrar “um exemplo da forma maioritariamente precária” como o trabalho é feito nas instituições, os bolseiros concluem que “69% dos trabalhadores precários [que, mais uma vez, incluem as bolsas de formação] da FCSH estarão no desemprego no final de 2018”, e que “94% destes trabalhadores não terão acesso a subsídio de desemprego por se encontrarem contratados ao abrigo do Estatuto do Bolseiro de Investigação Científica que não o prevê”.

Contactada pelo PÚBLICO, a direcção da FCSH da UNL não fez comentários sobre os resultados do inquérito, limitando-se apenas a referir que este trabalho apresenta “imprecisões” que “suscitam uma análise enviesada da complexidade da realidade da FCSH”. Segundo referem, neste trabalho misturam-se “categorias distintas, nomeadamente estudantes de doutoramento sem bolsa, bolseiros em formação (bolseiros de iniciação à investigação, bolseiros de doutoramento), bolseiros em formação mais avançada de pós-doutoramento, investigadores com contrato com a FCSH, financiados pela FCT, e docentes especialmente contratados ao abrigo do Estatuto da Carreira Docente Universitária”.

Em resposta por email ao PÚBLICO, a direcção da FCSH argumenta que “o número apontado [no inquérito] de uma ordem de grandeza de cerca de 600 pessoas em precariedade corresponderá ao universo da Universidade Nova de Lisboa na sua totalidade e não da FCSH”. Por fim, a direcção da FCSH diz-se “empenhada em promover o emprego científico” confirmando a abertura dos dois procedimentos concursais previstos para 2018, destinados a todos os bolseiros doutorados elegíveis.

Apesar desta disponibilidade da direcção da FCSH, noutras universidades, como a Universidade de Lisboa (UL), o seu reitor, António Cruz Serra, já deixou claro (numa entrevista ao PÚBLICO em Setembro de 2017) que prefere usar os lugares que vai ter de abrir no quadro por causa do diploma do emprego científico para contratar professores. “A lei que foi aprovada é uma enorme oportunidade para combater o principal problema da universidade portuguesa que é o envelhecimento do corpo docente. O que tenciono fazer na UL é propor aos presidentes das faculdades e directores dos institutos que abram o maior número de concursos para cumprir o Decreto-Lei 57, na carreira docente e não na carreira de investigação”, disse António Cruz Serra, admitindo não estar “muito interessado em contratar investigadores”.

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