Auditorias às PPP mantêm-se com inspectora da lista Swissleaks

IGF renova confiança em inspectora descoberta nas fichas bancárias do HSBC. Funcionária presidiu a júri do concurso da venda do navio Atlântida, alienado pelos Estaleiros de Viana por 8,7 milhões, mas avaliado dois anos antes em 29 milhões.

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As revelações do Swissleaks aconteceram em 2015, a partir dos ficheiros da famosa “Lista Lagarde” MIKE SEGAR/REUTERS

Quando nos idos de Março de 2015 estala na Europa o caso Swissleaks, alguns nomes chamam a atenção entre os milhares de alegados antigos clientes secretos do HSBC Private Bank. Os ficheiros dos Panama Papers estavam a um ano de começar a expor com estrondo uma miríade de esquemas de planeamento e evasão fiscal através de sociedades offshore. O caso com epicentro em Genebra não agita como agitará o escândalo do Panamá, mas levanta a ponta de um véu comprido, põe o dedo na ferida em relação ao segredo bancário suíço, pressiona os governos europeus a reagirem.

Em Portugal, um nome passaria despercebido não fosse a TVI descobrir nos documentos da filial suíça do britânico HSBC a ficha bancária de Filomena Martinho Bacelar, uma inspectora de Finanças colocada num ponto-chave do controlo estratégico da administração financeira do Estado, referida na investigação jornalística como alegada detentora em 2006/2007 de uma conta suíça ligada à sociedade offshore Bordel Investment Holding Limited, do paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas.

Três anos depois das revelações, a inspectora mantém-se na Inspecção-geral de Finanças (IGF) como chefe de equipa com direcção operacional, a quem o inspector-geral, Vítor Braz, tem renovado a confiança sucessivamente. Fê-lo em 2016, 2017 e este ano voltou a fazê-lo, decidindo manter na sua alçada responsabilidades no controlo das parcerias público-privadas (PPP) e da promoção da transparência na gestão das empresas públicas.

O PÚBLICO apurou que num despacho de 9 de Fevereiro de 2018, ao distribuir a responsabilidade dos vários projectos internos, Vítor Braz decidiu colocar de novo Filomena Martinho Bacelar na chefia de equipas responsáveis por “contribuir para a boa execução financeira dos contratos de PPP e outros contratos de concessão”. Uma área onde cabem realidades distintas que podem ir das auditorias às PPP rodoviárias, da Saúde, ao contrato de concessão da RTP, Fertagus e Metro Sul do Tejo, passando mesmo pelas concessões de serviço público que asseguram os transportes abrangidos pelo subsídio social de mobilidade para a Madeira e os Açores.

Em termos operacionais, Bacelar tem responsabilidades idênticas às de um inspector de finanças director e, no caso do controlo das PPP, responde à subinspectora Maria Isabel Castelão Silva, da equipa de direcção de Braz.

Com outro inspector de finanças director, a funcionária continua ainda a ter responsabilidades nos projectos destinados a “promover a transparência na gestão das empresas públicas e na atribuição de compensações financeiras do Estado”, a “promover a regularidade da prestação de contas e contribuir para a melhoria do Estado” ou a “contribuir para a sustentabilidade económica e financeira do Sector Empresarial do Estado”.

A justificação

A IGF é um serviço central do Estado com autonomia administrativa, na directa dependência do ministro das Finanças. E se Bacelar tem merecido a confiança do inspector-geral da IGF, não se sabe se Mário Centeno acompanha a decisão. O PÚBLICO perguntou isso mesmo por escrito ao ministro das Finanças, mas do governante não obteve qualquer comentário.

O ministro nunca se pronunciou sobre o caso. E não se lhe conhece a resposta a uma carta que lhe foi dirigida sobre o assunto, ainda Centeno não era presidente do Eurogrupo, pela eurodeputada do PS Ana Gomes, actual vice-presidente da comissão especial do Parlamento Europeu dos Paradise Papers.

Em Julho de 2017 o PÚBLICO noticiara já que Filomena Martinho Bacelar se mantinha a auditar as PPP e, para justificar a renovação do cargo de chefe de equipa (nomeada por três anos, de 2017 a 2019), a IGF invocou a sua “competência profissional”, o princípio da presunção de inocência e as conclusões de um inquérito pedido à Procuradoria-Geral da República (PGR) que, segundo o resultado citado pela própria IGF, sustenta que “nada existe do ponto de vista legal que obste ao pleno exercício da lic.ª Filomena Moutinho Bacelar [sic] das atribuições inscritas no seu estatuto profissional”.

Assunto familiar

Contactada pelo PÚBLICO através do gabinete do ministro das Finanças, Filomena Martinho Bacelar não respondeu nunca às perguntas que lhe foram dirigidas em Julho de 2017, nem a um pedido de esclarecimento sobre as consequências tributárias do Swissleaks enviado na última semana. Quando, já em 2016, foi contactada pela TVI, afirmou, segundo citou então a estação de televisão: “Sempre tenho actuado com lealdade e independência. A minha integridade foi colocada em causa. Não tenho contas no estrangeiro. É um assunto da família do meu marido”.

Não se sabe quem detém actualmente o Bordel Investment Holding Limited ou se o offshore ainda está activo nas Ilhas Virgens Britânicas. Mas sabe-se que essa sociedade era em 2006 dona de uma imobiliária portuguesa, a Searchouse, uma empresa sem trabalhadores. Durante vários anos, esta sociedade teve como gerente Ana Bruno, advogada referenciada nas investigações da Operação Monte Branco pelas alegadas ligações aos esquemas de evasão fiscal que giravam em torno da gestora de fortunas suíça Akoya.

Bruno foi gestora da sociedade de 2006 até ao final de Dezembro de 2015. Foi aí, poucos meses depois do escândalo Swissleaks, que a gerência da Searchouse passou para as mãos de Rui Pedro Alves Bernardo. Deixava de ter a sede na torre três das Amoreiras para estar na Rua Augusto Costa, em Benfica.

Além de inspectora de Finanças, Filomena Martinho Bacelar era, pelo menos em 2016, presidente da assembleia-geral do grupo Constarte, uma empresa familiar na área da construção e imobiliário. E tem ocupado vários cargos em órgãos sociais de empresas públicas. Foi vogal da mesa da assembleia-geral da Parque Expo e já presidiu às comissões de fixação de remunerações da Metro do Porto, da Docapesca e à mesa da assembleia-geral da ANA – Aeroportos de Portugal.

O navio Atlântida

Em 2014, o seu nome cruza-se com outra história: o concurso internacional lançado pelos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) para vender o navio Atlântida, o último acto de um processo complexo com que os estaleiros se confrontavam desde que a empresa regional açoriana Atlânticoline cancelara a encomenda e a Venezuela (através da petrolífera PDVSA) deixara de se interessar pela compra da embarcação. Um negócio cujos contornos estão a ser investigados há mais de três anos pela Unidade Nacional de Combate a Corrupção da PJ e pelo Ministério Público no âmbito da Operação Atlântis.

Quando chega o mês de Fevereiro de 2014, era então José Pedro-Aguiar Branco ministro da Defesa, a administração dos ENVC decide avançar com um procedimento de venda. Filomena Bacelar é escolhida para presidir ao júri do concurso, por indicação da IGF, a pedido do Ministério das Finanças. A seu lado, como vogais, tem Cristina Sampaio (da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças) e o capitão-tenente João Paulo Simões Madeira.

A administração dos estaleiros contava com dois braços na assessoria: do ponto de vista financeiro, o Banco Espírito Santo de Investimento (BESI), então do universo do GES, e como assessor jurídico a sociedade de advogados PBBR. Os dois podiam apoiar o júri e participar nas reuniões para as quais fossem convocados, mas sem direito de voto.

Ao júri cabia, entre outras competências, fazer “a avaliação das propostas e a elaboração dos respectivos relatórios de apreciação”. O critério de adjudicação era o preço mais elevado, não tendo sido definido qualquer preço mínimo, nem exigido que os putativos concorrentes apresentassem garantias bancárias. O programa do procedimento (o regulamento) e o caderno de encargos não foram da responsabilidade do júri, mas estipulados pelos ENVC. E também a decisão final sobre a venda caberia à administração dos ENVC, não ao júri. Mas pelo meio há episódios relevantes.

A proposta mais alta, que sairia vencedora por 12,8 milhões, chegou pela mão da empresa de origem grego-liberiana Thesarco Shipping, com escritórios em Atenas. Mas o investidor nunca se interessaria pelo negócio. Ao longo de várias semanas nunca respondeu às tentativas de contacto da administração dos ENVC. Não apareceu para assinar o contrato de venda. E isso levou a administração a anular a adjudicação (algo admitido no procedimento) e a decidir-se pelo segundo classificado, pelos 8,75 milhões de euros oferecidos pelo empresário Mário Ferreira, dono da sociedade Mystics Cruises.

Documentação lida pelo PÚBLICO mostra que, dois anos antes, uma empresa de consultadoria chamada Phimo, pela mão do administrador Miguel Dias Costa, avaliava o Atlântida em 29 milhões de euros, tendo já em conta alguma desvalorização associada à idade do navio, então parado no Arsenal do Alfeite à espera de comprador.

O relatório final do júri presidido pela inspectora de Finanças, concluído a 25 de Junho de 2014, não refere qualquer avaliação feita anteriormente ao procedimento do concurso. Ordenou as propostas, tal como previsto no regulamento, e descreveu os vários passos percorridos durante o concurso (anúncio, visitas dos interessados, esclarecimentos prestados pelo júri, documentação verificada, recepção das propostas e as fases que se passaram até à enumeração final das propostas).

O PÚBLICO contactou Filomena Martinho Bacelar através do gabinete de imprensa do Ministério das Finanças, para saber se o júri que liderou, ao preparar a avaliação das propostas e ao elaborar os relatórios do concurso, solicitou e teve em conta a informação interna dos ENVC relativa a avaliações anteriores do valor real de mercado do Atlântida, mas não obteve resposta.

Os contornos do negócio estão a ser investigados no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) no mesmo inquérito que versa o processo de subconcessão dos estaleiros, por suspeitas da prática de crimes de administração danosa, corrupção e participação económica em negócio. Até meados de Janeiro ainda não tinha arguidos constituídos.

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