“Um saber misterioso que tornava os filmes em milagres”

Manoel de Oliveira aclamado na imprensa internacional. A morte do cineasta português mereceu chamada de capa nas edições de sexta-feira dos jornais franceses Le Monde e Libération, e anuncia-se uma edição especial dos lendários Cahiers du Cinéma em Maio inteiramente dedicada ao autor de Vale Abrãao.

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Um Filme Falado
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A capa da edição desta sexta-feira do jornal Libération
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A capa da edição do jornal Le Monde

Não será uma surpresa que a imprensa francesa dê tamanho destaque ao desaparecimento do cineasta português – foi, afinal, a partir de França e da aclamação obtida por Amor de Perdição que a sua carreira internacional começou e que a sua reputação de grande autor cinematográfico foi construída.

Sem esquecer que muitos dos seus filmes foram realizados em co-produção com França, com a presença de actores franceses como Catherine Deneuve ou Jeanne Moreau. “É preciso que os génios ultrapassem as fronteiras para que os reconheçam”, como diz o realizador João Pedro Rodrigues, contactado pelo Libération para um depoimento sobre a morte de Oliveira.

Richard Brody, crítico da revista americana New Yorker, considera-o numa pequena peça publicada na quinta-feira na edição online que Oliveira “era um herói do mundo cinéfilo francês”, mas o seu texto é prova da importância que lhe é atribuída por críticos e observadores de todo o mundo. Brody descreve a chave do seu cinema como uma “intimidade” que tem “um pé nos séculos dos clássicos antigos e o outro nos néons que iluminam as ruas das cidades”, antes de considerar Um Filme Falado como “o melhor filme que vi que responde aos ataques do 11 de Setembro”.

Num longo obituário no jornal New York Times, o crítico e programador Dennis Lim descreve-o como um cineasta “fora de tempo, ou talvez pertencente a muitos tempos, um modernista do século XX atraído pelos temas e pelas tradições de outras eras”, e fala igualmente da “perversa banalidade do seu método” - “um cinema de planos longos e quadros estáticos, uma estética tão elementar que estava à beira do primitivo”. 

Deborah Young, na revista The Hollywood Reporter, cita a sua longevidade como a chave do seu apelo para gerações de cinéfilos ferrenhos, e o seu “humanismo inabalável e empenho firme na cultura” como marca essencial da sua reputação e influência.

Esteve Riambau, director da Filmoteca da Catalunha, fala ao jornal espanhol El País de Oliveira como “cineasta das palavras” mas também “da pureza das imagens”. Peter Bradshaw, crítico do jornal britânico The Guardian, propõe uma recordação pessoal dos seus filmes “loquazes, elegantes, levemente soignés” e escolhe como seu preferido Um Filme Falado - “um caso único extraordinário, tal como o seu realizador”. E no site Indiewire, Eric Kohn fala de um cineasta que “desafiou implicitamente as limitações do mercado, fundindo ambições literárias e cinemáticas com contínuo engenho”.

Mas é, de facto, de França que vêm as homenagens mais sentidas. Jacques Mandelbaum, crítico do Monde, começa o seu obituário dizendo que “francamente, já não acreditávamos que Manoel de Oliveira alguma vez morresse” antes de lhe chamar “um dos maiores artistas do século passado”, “pioneiro da vanguarda”, “mais jovem na sua velhice do que muitos principiantes”, “anti-hollywoodiano radical”, “franco-atirador da modernidade cinematográfica”. “No cinema de Oliveira,” escreve, “o mundo enquanto tal não existe; é à sua representação pelas artes, os discursos e as crenças que nos transporta a sua mise en scène, com um poder de revelação tanto mais penetrante e um deliciado desprezo das hierarquias artísticas e socioculturais”.

Jean-Marc Lalanne, da revista Les Inrocks, fala de “êxtases de cinema, planos de uma beleza ora selvagem ora etérea mas muitas vezes siderante”, de “um exercício incessante da arte da surpresa”.

No Libération, Didier Péron compara-o a uma “anomalia estético-temporal”, com “um pé no século XIX romântico e outro no modernismo, com o radicalismo das suas escolhas de encenação e a especificidade da sua direcção de actores”. E destaca a língua, a fala, como “vector de vertigem que unifica a sua obra” - “a voz off do narrador de Vale Abrãao é o que de mais belo ouvimos nos últimos 20 anos, como se Proust tivesse regressado dos mortos para escrever uma apostila fílmica ao seu Tempo Reencontrado”. 

O jornal contactou Michael Lonsdale, um dos actores principais da última longa-metragem de Oliveira, O Gebo e a Sombra, que o recorda como um “ser misterioso, que não falava muito, o tipo de personagem à margem que faz o que quer, com uma grande sensibilidade”. No mesmo dossier, Catherine Deneuve, que rodou com Oliveira em O Convento, fala de alguém “muito especial, sedutor e autoritário, muitas vezes encantador”, com qualquer coisa de “um artesão que trabalha sem cessar os seus filmes, impondo em plena criação a sua visão”.

E Jean-Michel Frodon, antigo director dos Cahiers du Cinéma e crítico na edição francesa da revista online Slate, fala de um “poeta da realização, um apaixonado das palavras e dos corpos, detentor de um saber misterioso que tornava os seus filmes em milagres”. Um saber misterioso que “não podia nem queria explicar”.

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