Yuri da Cunha: se não cuidar do passado, Angola será “um país perdido no tempo”

No dia em que celebra 20 anos de carreira com um concerto em Lisboa, Yuri da Cunha fala de Angola e dos seus combates pela cultura.

Foto
Yuri da Cunha DR

Completou 20 anos de carreira em 2013 mas continua a celebrá-los. Yuri da Cunha, músico e cantor angolano de 33 anos, apresenta este sábado, 19 de Julho, no Meo Arena em Lisboa, às 22h, um concerto com vários convidados: Anselmo Ralph, Nelson Freitas, Yola Semedo, Big Nelo, C4 Pedro, Zona 5, Calado Show, Lizha James, The Groove, Walter Ananás, Maya Cool e Os Piluka, Calado Show, DJ Kadu, DJ Dandy Lisbon. Semba, kizomba, kuduro, à mistura com ritmos congoleses como o ndombolo ou o soukous, ditarão o ritmo e farão a festa. Os 20 anos têm uma história, que ele aqui conta.

Nascido no Kuanza Sul, a 13 de Setembro de 1980, Yuri da Cunha é levado pela família para Luanda com apenas 3 anos, por causa da guerra. E lá ficou a viver, até hoje. Tinha lá tios, o irmão do pai e quase toda a família da mãe. A adaptação, diz, foi fácil. “Muito fácil. Na verdade, eu sou mais caluanda até do que do Kuanza Sul. Fui adquirindo coisas do Kuanza Sul porque sempre tive uma ligação grande com os meus parentes mais velhos, que se enraizaram naquilo e eu sempre tive essa ligação com a terra.”

Em 1988 (ou 89), ia ele a caminho dos 10 anos de idade, distinguiu-se num concurso de rua, Ku Tonoca, e em 1993 entrou na escola da Rádio Nacional de Angola. “É desde essa altura que conto a minha carreira, 20 anos feitos em 2013, que na verdade agora já são 21. Começámos a tournée em Moçambique no ano passado mas prolongou-se até este ano. Eu conto a partir de 1 de Junho de 1993, Dia da Criança, que foi quando fiz a primeira apresentação. E dois anos depois lancei a primeira música, gravada em 1994.”

Quando começou a compor, Yuri tinha na cabeça vários sons. “Fui influenciado pelo meu pai, na altura, mas sobretudo Bonga, Teta Lando, David Zé e Urbano de Castro. Esses é que eu ouvia muito, mesmo. Depois, nos anos 1990, passei a ouvir Eduardo Paim, Carlos Burity, Balão, muito André Mingas, essas eram as influências de Angola que eu tinha.”

Só música angolana porque, diz ele, o pai não deixava ouvir música internacional. “O meu pai era um ditador”, brinca Yuri. “Não tínhamos outra saída senão ouvir Michael Jackson e Madonna. E desde pequenino que eu me tornei fã do Michael Jackson.”

E foi daí, de Michael Jackson, que lhe veio a atracção pela música de dança. “Veio daí, mas eu só adoptei a dança, mesmo, nos anos 2000. Eu tive uma namorada em Portugal, em 1998/99, congolesa, e eu então comecei a ter uma proximidade com a música da República Democrática do Congo, Koffi Olomidé, Wenge Musique, Papa Wemba… Eles dançam muito, então eu comecei a achar aquilo bonito e a querer misturar aquilo com a minha música. Ndombolo, soukous e kuduro dançado, juntei isso ao semba.”

Pelo sucesso cultural
Não teve, de início, aceitação fácil. “Já fui vaiado e tudo. As pessoas não percebiam, parecia coisa de maluco. Mas eu sabia que ia dar certo porque as crianças gostavam e as crianças são o elo mais sincero do mundo. Reparam apenas nas coisas que elas gostam e o que não gostam ignoram. Então eu fui insistindo e, passado um ano, essa mistura de música angolana e do Congo, Michael Jackson e kuduro, começou a funcionar.”

O primeiro disco, É Tudo Amor, gravou-o em Portugal, pela Valentim de Carvalho, em 1999. Makumba, a canção que o tornou conhecido do grande público, gravou-a em 2003 e venceu o Top dos Mais Queridos em Angola no ano seguinte, 2004. O segundo disco chega em 2005. “Com o sucesso de Makumba conseguimos fazer alguns shows e ganhar algum dinheiro e aí tivemos a possibilidade de gravar o disco Eu.” O terceiro e mais recente longa-duração de Yuri da Cunha foi lançado em 2009 com título em kimbundu, Kuma Kwa Kié. “Significa ‘amanheceu’. Os mais velhos lá na terra têm a sua forma de se expressar, traduzem ainda mais profundo e dizem: amanheceu o dia.”

Mas se o título é em kimbundu, as canções são quase todas em português. “Em Angola a maior parte das pessoas falam português. Eu sinto essa necessidade por valorização das línguas nacionais. Já cantei em fiote, em umbundu, agora quero cantar em kikongo. Isso para valorização das nossas línguas. Eu faço uma confusão tremenda, não sei se os dirigentes angolanos gostam de me ouvir, mas as línguas nacionais têm de entrar na escola como se fossem o inglês, com notas para passar ou reprovar. Gostaria que tivessem atenção nisso, porque é tão bom ouvir o cabo-verdiano a falar o crioulo ou o moçambicano a falar as línguas locais. Acho que ganharíamos muito com isso.”

Yuri da Cunha insiste neste ponto, mesmo para lá da música. “A minha luta não é muito pelo sucesso musical, claro que também é porque é daí que eu vivo, mas é um bocadinho pelo sucesso cultural do país. Para que possamos realmente dizer: nós somos angolanos. Ter a nossa identificação cultural, para lá de Portugal ou do Brasil. Só assim vamos à frente. É protegendo o passado que se faz o futuro.”

Duas homenagens
Por falar do passado, Yuri quer homenagear de algum modo no espectáculo deste sábado as gerações que o influenciaram e vai fazê-lo em torno de André Mingas. “Vou cantar um tema dele, O que eu quero. Mas a verdadeira homenagem vai ser ao meu amigo e irmão, que me ensinou muitas coisas do mercado angolano, que é o Roberto Tiago de Almeida, Beto de Almeida, dos irmãos Almeida, que perdemos no ano passado – perdemos de vista, mas com certeza que vive dentro de nós. Vamos interpretar um tema dele, Viola, que foi um grande sucesso em Angola. Foi uma música que em tempos conturbados, de guerra, ajudou muito os militares.”

Além disso, num disco recente (um maxi-single com cinco temas) Yuri gravou a faixa-título, Kandengue atrevido, em dueto com Paulo Flores. “O Paulo Flores é para mim dos maiores artistas da música angolana, dos maiores cantores e compositores, é um fenómeno, sou muito fã dele.”

Do passado ao presente, Yuri da Cunha vê o futuro de Angola em termos culturais e musicais de forma desassombrada. “Eu acho que essa luta não deve ser feita só pelo Yuri da Cunha ou pelo Paulo Flores, tem de ser institucionalizada. Para que possamos contar uma história, porque um país sem história é um país sem nada. E nós não chegámos ainda a contar uma história. Não temos livros que contem a história escrita, não temos documentários fortes para que possamos ensinar os nossos filhos sobre o país, não temos nada com sustentabilidade para fazer isso. Agora eu acredito que se tivermos – e isso não é uma indirecta, é uma directa mesmo – orçamento do Estado, política de Estado, para os empresários apoiarem essas questões do património cultural e da sua divulgação, nós teremos um futuro melhor e promissor para a cultura de Angola. Mas tem que começar agora, porque agora ainda tem pessoas interessadas em mostrar o que realmente Angola teve no passado, num passado que eu não vivi mas que sinto como importante. Porque hoje, se eu estou em Portugal mostrando a nossa música, foi porque o meu pai teve a capacidade de me obrigar a ouvi-la. Com jeito, com calma, temos que fazer o mesmo com os nossos filhos. Senão, seremos um país perdido no tempo. Seremos ricos em petróleo, em diamantes, ricos em confusão, mas seremos zero culturalmente.”

 

P.S.: Artigo alterado às 17h42 de 19 de Julho. Onde, por erro automático do corrector do word, surgiu escrito "quizomba" passou a estar, como deveria, kizomba.

 

Sugerir correcção
Comentar