Rui Horta preparou uma prenda para o 100.º aniversário de John Cage

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O corpo de Bertoncelli foi preparado como Cage preparou um piano Paulo Pimenta

Depois da estreia, esta quarta-feira, na Casa da Música, no Porto, "Danza Preparata" apresenta-se em Guimarães (dia 13) e Lisboa (dia 29). Depois, segue-se a Europa.

Em 1946, já depois dos seus primeiros encontros imediatos com Merce Cunningham e com a Índia, John Cage armadilhou meticulosamente um piano com dezenas de porcas, parafusos, clips, papéis e borrachas e começou a compor uma peça, "Sonatas e Interlúdios para piano preparado", que se tornou mítica. Décadas depois, neste 2012 em que Cage faria 100 anos, Rui Horta também armadilhou uma peça para ele: "Danza Preparata", que tem hoje a sua estreia mundial na Casa da Música, é um presente de aniversário ("por isso é que há aquelas velinhas no palco") para essa figura seminal da arte contemporânea. "Ele abriu-nos um caminho no escuro", diz o coreógrafo português.

Cage preparou um piano para "Sonatas e Interlúdios", Rui Horta preparou um corpo para Danza Preparata: circunscrito a um campo minado de peças de mikado, dobrado, colado, o corpo da bailarina italiana Silvia Bertoncelli é um duplo do piano armadilhado de Rolf Hind. "Um corpo preparado é um corpo desestruturado, fragmentado, aprisionado, limitado. Através das limitações, dos dispositivos que criei para a Silvia, fui obrigado a reinventar-me como coreógrafo. Tal como este piano desenvolve sons atonais, estranhíssimos, bizarros, este corpo gera movimentos que eu nunca suscitaria em primeira instância", explica.

Para um coreógrafo que, como ele, fez o seu "caminho de emancipação em relação à música" (foi "a emancipação de uma geração", sublinha), criar na dependência de uma partitura não é um gesto evidente. Mas o pianista, Rolf Hind, deu um passo decisivo na sua direcção: "Ele aprendeu o score todo e toca o concerto do princípio ao fim sem a pauta. Isso libertou-o para olhar constantemente para a Silvia. No fundo, para estar com ela ao longo de toda a peça." E depois, acrescenta, Cage é Cage. Resumindo: o isco perfeito para uma encomenda como esta que a Casa da Música lhe atirou para as mãos: "Para nós, coreógrafos contemporâneos, o Cage é uma espécie de pedra de base. É uma cultura muito similar, até do ponto de vista da metodologia: a improvisação, o aleatório, o encontrar através da experimentação. Nós sentimo-nos bem com o Cage." O que não significa que seja fácil: "Não podemos seguir esta música demasiado de perto. Se em cada plim e em cada plum fizermos um gesto, torna-se caricatura."

Em vez dela, Rui Horta preferiu a metáfora: "A vida é um piano preparado. Está cheia de papéis, de clips, de porcas, de coisas no caminho, de chatices, de problemas - de crises! - e nós reinventamo-nos com isso. Há sempre limites, e às vezes os limites são bem-vindos. Aliás, esse é o território da contemporaneidade."

E é precisamente num território em crise que "Danza Preparata" fará o seu caminho: depois de Guimarães (13) e Lisboa (29), segue-se uma série de festivais europeus, de Estrasburgo a Vilnius, de Roma a Salzburgo.

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