A resistência em Marrocos vista de Paris

1. Perdi por um triz Marrocos Medieval, grande exposição deste Outono no Louvre, porque o meu voo Paris-Lisboa era um dia antes da abertura. Mas consegui ver, a caminho do aeroporto, Marrocos Contemporâneo, grande exposição deste Outono no Instituto do Mundo Árabe, inaugurada na véspera. Ambas resultam da colaboração entre franceses e marroquinos e articulam-se, em contraponto. Megapresença marroquina na rentrée do ex-colonizador.

2. Se traçarmos uma linha de Rabat ao Cairo, Marrocos é o único país do Norte de África que se manteve em relativo sossego desde o início da chamada Primavera Árabe. Digo relativo porque o meu ponto de vista é exterior. Não vou a Marrocos desde 2007.

3. Na abertura de Marrocos Contemporâneo, Jack Lang — que em França foi ministro da Cultura ao longo dos anos 1980, depois ministro da Educação ao longo dos anos 90 e actualmente preside ao Instituto do Mundo Árabe — assegurou que Mohammed VI apoiara os organizadores dando-lhes “a mais total liberdade”. Mais, sublinhou: “Quero dizer e repetir a que ponto o Rei de Marrocos, homem esclarecido, apaixonado, profundamente erudito, cultivado, traz ao seu país uma visão, um olhar pleno de esperança neste momento em que os confrontos, as violências, aqui e lá, por vezes levam a duvidar do ser humano.” Demasiado enfático para elogio de circunstância, pareceu-me, para mais vindo de alguém como Lang. Fui conferir com um amigo académico que trabalha com Marrocos há anos, e ele falou-me de outros projectos a que o rei também dera todo o apoio, sem interferências. Mohammed VI não é Hassan II, distinguiu, respira-se uma certa liberdade em Marrocos. Com três excepções: não se diz mal do rei e não se fala de Ceuta nem do Sara Ocidental, territórios em disputa.

4. Bate certo com o que está exposto nos três pisos do Instituto do Mundo Árabe, entre pintura, escultura, vídeo, fotografia e instalação de 80 artistas contemporâneos marroquinos: não há sinais de rei, Ceuta ou Sara Ocidental. Fora isso, só em Beirute vi arte contemporânea de um país muçulmano tão contundente em relação a sexualidade e questões de género, e nunca vi nada tão ousado quanto a religião. Depois, estão cá as revoltas árabes, estão cá as mortes no Mediterrâneo, e o ex-colonizador não escapa, estraçalhado de forma simbólica.

5. O percurso é descendente, o que corresponde também a uma descida do mais pacífico para o mais polémico, já nas caves do instituto. Começa-se pelo segundo piso, com uma panorâmica que cruza cerâmica e tapetes, vídeo e fotografia, maquetes e instalações. A pulsão dominante parece ser a de libertação, a arte como um espaço alternativo, saltando no espaço, ampliando o real. Isso está nas montagens fotográficas de Hicham Benohoud, que subvertem o interior de uma sala de aula, pondo alunos a flutuar, entortando mesas, separando partes dos corpos, como se um pedaço da cena tivesse decidido autonomizar-se no seu sonho. E está nas montagens fotográficas de Merji, que enchem de girassóis a icónica praça Jamma el Fna, em Marraquexe, ou incrustam um par de dinossauros na paisagem. Uma sala interior expõe, em montras, as peças de Khalil El Gherib como “o artista que não vende”. Gherib, que vive em Tânger, não assina nem data as peças, e não as comercializa, ou seja, não participa do mercado. Dentro das montras, como vestígios arqueológicos, as suas peças parecem, de facto, quase fósseis, lâminas de pedras, pedra misturada com tecido, pedra com inscrições. Voltando à sala grande, outra montra desfaz um dos símbolos quotidianos da vida nesta parte do mundo, o bule, de café, de chá, que aqui aparece em versões de cerâmica cubista, quebrando totalmente a forma até à inutilidade. E em frente está a bela série de André Elbaz que estraçalha esse símbolo da cultura do colonizador que é Madame Bovary. Elbaz meteu cópias do romance de Flaubert numa trituradora. Com as tirinhas, constrói telas que são uma espécie de argamassa mais ou menos em relevo, em que ainda distinguimos claramente palavras (“Madame Bovary à letra”), ou põe-nas dentro de uma gaiola (“Será preciso engaiolar Madame Bovary?”). Seria como, digamos, um moçambicano, meter numa gaiola Os Maias.

6. A descida para o piso inferior faz-se através de uma instalação de Faouzi Laatiris, com várias peças políticas. A primeira é uma espécie de pórtico com mosaicos de arte islâmica atravessados por uma daquelas fitas amarelas da polícia, onde se lê em inglês: “Police line do not cross crime scene.” Entrando, há letras prateadas na parede, e as mesmas letras projectadas por cima: “Resistir é criar.”

7. Os visitantes continuam o percurso atravessando zonas de serviço onde há tapetes pendurados, o que reforça a ideia de a exposição ter tomado conta do instituto. Ao fundo da escada, uma pirâmide branca convida a descalçar para entrar, como numa mesquita, e lá dentro está talvez a peça mais hipnótica da exposição, centenas de candelabros no tecto, multiplicadas ao infinito por espelhos, como um céu nocturno. A ideia da mesquita prossegue noutra instalação de luz, em que os crentes aparecem como uma massa de blocos brancos, todos iguais. Numa instalação vídeo de Leila Alaoui, três painéis alternam imagens do Mediterrâneo e rostos de imigrantes subsarianos, enquanto se ouvem as histórias de quem tentou atravessar para a Europa.

8. Mais uma descida e a exposição desemboca no subterrâneo do instituto, cujos pilares lembram, aliás, a lógica de uma mesquita como a de Córdova. Aqui estão algumas peças de designers de moda, e depois, ao longo de dois salões, as propostas eventualmente mais controversas. Na primeira, uma série fotográfica mostra manchetes de tablóides sobre bombas suicidas entre sacos de lixo ou um homem com uma venda nos olhos que é a bandeira dos Estados Unidos. Noutra série, uma grávida exibe o barrigão nu, lingerie de couro preta, botas de salto alto, numa sequência de poses. Há uma fotografia em que o corpo de uma mulher sai de um colchão esventrado e o que vemos são apenas as suas pernas nuas no ar. Um vídeo mostra uma jovem mulher coberta de negro da cabeça aos joelhos e depois de pernas nuas e saltos altos, andando pelas ruas de Marraquexe. Ao lado uma citação de Rilke: “As obras de arte nascem sempre do que desafia o perigo, do que vai até ao fim de uma experiência, até ao ponto que nenhum humano pode passar. Quanto mais longe vamos, mais própria e pessoal, mais única se torna uma vida.”

9. Então na última sala está o vídeo de Mehdi-Georges Lahlou, que se chama Andando 30 km de Saltos Altos entre dois Espaços Artísticos: o artista, de collants negros até à cintura e sapatos vermelhos de salto alto vermelho, penosamente caminhando entre os carros. Como disrupção do imaginário macho muçulmano, nunca vi semelhante. O mesmo artista tem uma instalação na sala em que a cabeça de um homem equilibra o cubo negro que é o edifício-símbolo da peregrinação da Meca, e portanto intocável para milhões de muçulmanos em todo o mundo: a Kaaba, ponto mais sagrado do islão. Outro artista, Said Afifi, também desafia o cubo num díptico de fotomontagens intitulado A Quadratura do Círculo: na primeira imagem, em vez de um cubo, há uma esfera gigante no meio dos peregrinos; na segunda, a esfera está dentro de um quadrado. E há um vídeo em que jovens de calças e lingerie fazem a barba a tapetes de mesquita, literalmente com um barbeador, pacientemente indo e vindo, sentados no chão. Finalmente, na instalação de Batoul S’himi, chamada Mundo Árabe sob Pressão, aparecem panelas de pressão rebentadas, machados com recortes no metal e instrumentos de cozinha que são espelhos.

Marrocos Medieval — Um Império de África a Espanha, até 19 de Janeiro 2015; Marrocos Contemporâneo, até 25 de Janeiro     

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