Damo Suzuki (1950-2024): o eterno vocalista dos Can, um aventureiro, um nómada do som

Com os Can, Suzuki gravou alguns dos discos mais importantes do rock do século XX.

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Damo Suzuki num concerto em Sheffield, Inglaterra, em 2010 Wolstenholme/Redferns

Hey you!”, cantava ele, voz frágil a planar sobre guitarra expansiva, bateria libertária e propulsiva. “You’re losing, you’re losing, you’re losing, you’re losing your vitamin C!”. A voz do japonês Damo Suzuki agraciou discos fundamentais dos Can, banda fundamental do rock alemão, banda fundamental do rock mais aventureiro que o século XX nos deu. Suzuki morreu esta sexta-feira, aos 74 anos, anunciou este sábado a Spoon Records nas redes sociais. A causa da morte não foi revelada, mas em 2014 foi-lhe diagnosticado um cancro do cólon.

“A sua energia criativa sem limites tocou tantas pessoas em todo o mundo, não só com os Can, mas também na sua Network Tour, que abrangeu todos os continentes. A alma bondosa e o sorriso atrevido do Damo vão fazer falta para sempre. Juntar-se-á ao Michael, ao Jaki e ao Holger para uma jam fantástica!”, diz a mensagem, numa referência a Michael Karoli, Jaki Liebezeit e Holger Czukay, outros membros dos Can já falecidos. Irmin Schmidt é o único membro sobrevivente da era clássica do grupo.

Kenji "Damo" Suzuki nasceu em Kobe, Japão, a 16 de Janeiro de 1950. Teve como primeiro instrumento uma flauta, aos oito anos. Interessou-se pela música clássica em criança, mas excitar-se-ia, na adolescência, com a música R&B e rock vinda da América e do Reino Unido, sobretudo os Kinks (chegou a montar um clube de fãs da banda). Deixou o Japão aos 17 anos, viveu numa comuna sueca e andou por vários países – Dinamarca, França, Inglaterra, Irlanda – até chegar, em 1970, à Alemanha.

Nesta vida de nómada, conseguia alguns trocos a tocar na rua, improvisando para os transeuntes. Em Munique, dois deles, Holger Czukay e Jaki Liebezeit, ficaram impressionados. Como precisavam de substituir o vocalista Malcolm Mooney nos seus Can, convidaram Damo para um concerto que iam dar naquela noite. A abordagem improvisada que Damo Suzuki tinha nas ruas manteve-se nos Can – muitas letras foram inventadas no momento das longas jams de estúdio do grupo, cortadas e editadas antes de chegarem a disco.

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Os Can, da esquerda para a direita: Holger Czukay, Michael Karoli, Damo Suzuki, Irmin Schmidt e Jaki Liebezeit, durante a era Tago Mago Keystone/Getty Images

Os Can elevaram o rock psicadélico a novas e singulares dimensões, com guitarras líquidas, entre a abstracção e o funk, um baixo possante e uma bateria inesquecível (Liebezeit). Para o seu som único contribuíram os passados fora do rock dos seus membros –​ o teclista Irmin Schmidt e o baixista Holger Czukay estudaram com o compositor avant-garde Karlheinz Stockhausen, Jaki Liebezeit vinha do free jazz. Nos braços dos músicos dos Can, na voz livre, fluxo de consciência, de Suzuki, a jam era matéria de cavalheiros, coisa elegantíssima, dionisíaca e apolínea no mesmo fôlego.

Foi com Suzuki, que entrou na banda depois do disco de estreia Monster Movie, de 1969, gravado com Malcolm Mooney, que os Can fizeram os seus discos mais icónicos e perfeitos: Tago Mago (1971), Ege Bamyasi (1972) e Future Days (1973). Damo tinha pouca experiência musical antes de se juntar aos Can em 1970, mas o impacto desta era dourada do grupo é audível nas derivas pós-punk do final dos anos 70 e dos anos 80 (não por acaso os The Fall dedicaram-lhe um tema, I am Damo Suzuki e John Lydon, dos Sex Pistols e Public Image Ltd., tem Tago Mago entre os seus 12 discos favoritos), bem como nas experiências jazzísticas dos Radiohead (ouça-se Suzuki em Sing swan song, que Kanye West “samplaria”, e tente-se não pensar em Thom Yorke numa viagem mental ao Oriente) e na música libertária de colectivos psicadélicos, como os Sunburned Hand of the Man ou No-Neck Blues Band.

Damo Suzuki deixou a banda depois das sessões de gravação de Future Days. Casou-se, tornou-se testemunha de Jeová, culto que abandonaria, e afastou-se da música durante uma década. Acabaria por voltar a ela, tocando com Liebezeit e um sem-número de colaboradores.

No fim dos anos 90, formou a Damo Suzuki's Network, um nome genérico para as formações ad hoc com músicos de todo o mundo, com actuações que podiam chegar às quatro horas. Com essa network actuou em Portugal algumas vezes, com músicos portugueses e outros. Chamava a esses músicos “transportadores de som”, como se a música não nascesse neles, como se eles fossem um veículo para um som transcendente. Como ele. Que a jam continue.

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