Yes he CAN

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Com o grupo que fundou, os Can, ou a solo, Holger Czukay marcou a música popular dos últimos 40 anos. Entrevista com um dos músicos mais influentes do nosso tempo, no dia em que se apresenta ao vivo, no Lux, em Lisboa

Na história, em todas as histórias, há dois tipos de personagens fundamentais. Aquelas que se posicionam sempre para que as luzes dos holofotes incidam sobre elas. E as outras, as que ficam na sombra, mas que acabam por ser mais determinantes para o desenrolar da história do que as primeiras.

Holger Czukay pertence ao segundo grupo. A história da música popular dos últimos 40 anos não seria a mesma sem ele. É um visionário. Alguém a quem as sucessivas gerações de melómanos prestam tributo por causa da actividade com os Can, o grupo rock-não-rock que fundou no final dos anos 60, e por causa do seu trabalho a solo, quase sempre marcado pela surpresa.

Estudou com Karlheinz Stockhausen, formou os Can com os alemães Irmin Schmidt e Jaki Liebezeit, lançou um primeiro álbum a solo em 1969 - "Canaxis" - que ainda hoje é considerado pioneiro na introdução de técnicas de colagem próximas do "sampling" e na apropriação de "músicas do mundo". Nos Can era a figura central, o homem do baixo, mas essencialmente da edição final, aquele que transformava o caos num lugar habitável. Após o fim dos Can, em 1976, lançou-se em inúmeras aventuras a solo e colaborações, quase sempre guiadas pela experimentação.

Das bandas pós-punk à actual vaga de revitalização em torno da música "disco" (Lindstrom, Prins Thomas), é impossível passar ao lado do seu legado. No princípio do ano a editora Claremont 56, do britânico Mudd, reeditou o álbum "Good Morning Story" (1999). Hoje apresenta-se no Lux, em Lisboa, com 1ª parte dos portugueses Gala Drop, mais um dos grupos que lhe deve muito.

Há treze anos, quando o entrevistei pela primeira vez, estava excitado porque se encontrava a ensaiar um novo tipo de apresentação ao vivo, próximo daquilo que é uma sessão DJ. É nesse formato que se apresentará em Lisboa?

É qualquer coisa que está a meio caminho entre a sessão DJ e a actuação mais clássica de um músico, com improvisações, introdução de alguns "samplers" e muito dinamismo rítmico também. Sou uma espécie de mestre-de-cerimónias que tenta surpreender as pessoas. Actuo muitas vezes nesse formato, mas como os meus projectos são diferentes entre si, encontro espaço para experimentar outro tipo de situações. Não me repito. Preparo sempre qualquer coisa de único. Em Lisboa não será diferente.

É uma figura tutelar, alguém que é respeitado e reconhecido. Quando actua ao vivo sente que as pessoas estão lá pelo seu passado ou por aquilo que é capaz de oferecer no presente?

É inevitável que seja pelas duas coisas. Não tenho quaisquer ilusões acerca disso. Reconhecerem o meu trabalho deixa-me contente, mas aquilo que me continua a motivar são os novos projectos. É engraçado, porque os Can, ou o meu trabalho a solo, deixaram tantas pontas soltas que é muito interessante também revisitá-las. É isso que tenho feito também nos últimos tempos: reactualizar muito desse material que foi feito lá para trás.

É difícil falar de correntes nascidas nas últimas décadas - do pós-punk ao hip-hop, da música de dança à actual revitalização "disco" - sem o mencionar a si e aos Can, embora fique a ideia que são mais citados do que ouvidos.

É verdade, durante muito tempo foi assim que aconteceu. Hoje já não é assim, por causa das reedições em CD, inicialmente, e depois graças à internet. Mas, sim, durante muito tempo os Can eram o grupo de que toda a gente falava, principalmente alguns músicos, e ninguém tinha ouvido realmente. Aconteceu o mesmo com outros grupos ao longo da história, como os Velvet Underground, que acabaram por ter bastante influência nos Can. Mais até do que os Beatles, por exemplo. Os Velvet tinham uma forma de tocar meio dissonante, não eram grandes músicos ao princípio, mas tinham paixão e eram obsessivos com algumas ideias. Os Can também tinham isso, sem dúvida. Foi com eles que percebemos que podíamos mesmo ser uma banda rock.

Mas os Can eram músicos de formação, ao contrário dos Velvet. Não vinham de um ambiente rock. No seu caso, estudou com Stockhausen. Jaki vinha do jazz. Irmin Schmidt da clássica contemporânea. Eram dotados, tecnicamente.

Não é completamente verdade. Jaki era, talvez, o melhor de nós. Mas acabou por ser ele a estabelecer um padrão rítmico que nos influenciou decisivamente e que nos conduziu ao rock. Foi o ritmo, essa vibração, que nos levou ao rock. Nunca tínhamos pensado em ser uma banda rock. Naquele tempo não sabíamos o que queríamos, na realidade. Foram os Velvet, o ritmo e os primeiros concertos, muito excitantes e algo caóticos, que fizemos, que nos conduziram naquela direcção. De repente, percebemos que a excitação não estava na música de vanguarda, mas no rock.

Ao longo dos anos tem valorizado, umas vezes, e desvalorizado, outras, o facto de ter estudado com Stockhausen. Como é que olha para esses anos hoje em dia? 

Inicialmente era a música clássica que me interessava, depois o jazz, mas foi o radicalismo do pensamento de Stockhausen e a invenção da electrónica que acabaram por me interessar em determinada altura. Queria estar próximo de qualquer coisa nova e, naquele tempo, Stockhausen era a revolução. Essa é uma forma de ver as coisas. A outra é pensar que com ele percebi que tinha que casar com uma rapariga rica se queria fazer música sem compromissos... [risos]. Recordo-me de assistir a uma "performance" de Stockhausen e, no final, alguém argumentar que tinha sido sacudido por um choque sonoro e que apenas compreendia a experiência a que tinha sido sujeito se o autor ganhasse muito dinheiro. Stockhausen respondeu que não, que fazia aquilo por razões musicais. Do dinheiro não necessitava. "Casei com uma mulher rica", disse. No final do meu terceiro ano a estudar com ele, percebi que já estava preparado para ir à minha vida. Quando aconteceu, a primeira coisa que fiz foi tentar encontrar uma mulher rica. Mas não fui bem-sucedido. Acabei por encontrar o guitarrista Michael Karoli e depois Jaki Liebezeit e formámos os Can, o que não é a mesma coisa...[risos]. 

Há músicos de quem é fácil ter uma ideia onde se inspiraram, um livro, um filme, alguma viagem, a audição de outras músicas. Afirmou, recorrentemente, que não sabia de onde lhe vinha a inspiração. Ainda pensa dessa forma?

Não, agora sei de onde vem a inspiração. De Deus... [risos]. Se Deus é o todo, então é o todo da minha vida. É daí que vem a minha inspiração. É dessa crença nas minhas visões e ideias.

O que o inspirou na criação do seu primeiro álbum a solo, "Canaxis" (1969), colagem de ambientes e repetições sonoras que, de certa forma, anteciparam a técnica do "sampling"?

Resultou da minha obsessão pela rádio, por gravações sonoras das mais diversas proveniências, do meu trabalho com [o produtor e engenheiro de som] Rolf Dammers. Naquela altura, era mais técnico [de som] do que músico e esse disco acabava por reflectir esse cuidado com os pormenores de montagem.

Outra das novidades desse disco era a forma como misturava sons de proveniências diversas com músicas e técnicas Ocidentais, antecipando obras como "My Life In The Bush Of Ghosts" que David Byrne e Brian Eno compuseram.

Sim, muitos anos depois, em conversa com Brian Eno, ele reconheceu que esse disco e "Movies" [1979] acabaram por lhes servir de referência. Não sei... Quando estamos a fazer qualquer coisa, não estamos a pensar que vamos influenciar este ou aquele, estamos a fazer apenas aquilo em que acreditamos. É apenas isso. 

Para além de Eno, colaborou com outros músicos [de David Sylvian a Jah Wobble]. Há alguns anos concretizou mesmo um projecto de colaborações através da internet. O que pensa dessa ferramenta, em termos criativos?

Esse projecto iniciou-se quando comecei a ser contactado através do meu sítio na internet. A maior parte das pessoas queria desenvolver projectos comigo. Pensei: "ok, não conheço estas pessoas, mas posso fazer qualquer coisa com elas." Às tantas propus-lhes trabalhar comigo em algumas peças sonoras e a resposta foi surpreendente. Todos eles interpretaram de forma diferente os inúmeros elementos sonoros soltos que lhes dei. Por isso, sim, a internet é uma excelente ferramenta, embora ainda não saiba o suficiente sobre ela para a explorar na totalidade. Gostava, por exemplo, de colocar pessoas a tocar comigo, virtualmente, a partir da internet, em Lisboa.

Uma última questão: por serem ambos grupos alemães, da mesma altura e terem influenciado sucessivas gerações, especulou-se durante anos sobre uma eventual rivalidade dentre os Can e os Kraftwerk. O que pensa deles?

Nunca houve rivalidade, mas percebo que as pessoas digam essas coisas. No princípio, chegámos a ensaiar algumas vezes com eles. Talvez tenham sido mais importantes do que nós para a geração da música tecno. Mas, de alguma forma, acabaram por ficar reféns da sua imagem, aquela coisa dos robôs e das roupas. Tinham uma identidade muito precisa, em termos de música e imagem, o que é bom e mau. Nós éramos mais descuidados, mas também mais insubmissos, fomos mudando muito de disco para disco. A verdade é que é difícil imaginar qualquer membro dos Kraftwerk fora do grupo, enquanto nós prosseguimos as nossas carreiras, cada um à sua maneira. Só existe uma coisa que me chateia: eles devem ter ganho muito mais dinheiro do que nós.

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