Morreu Holger Czukay dos Can, um visionário da música popular

A história da música popular dos últimos 40 anos não seria a mesma sem ele. O alemão era alguém a quem as sucessivas gerações prestam tributo por causa dos Can e do seu trabalho a solo, marcado pela surpresa e pela antecipação de técnicas que acabaram por se disseminar.

Foto
O músico alemão Holger Czukay, um visionário, tinha 79 anos DR

Na história da música popular existe quem faça recair sobre si as atenções e quem permaneça na sombra, mas acabando por ter um papel bem mais relevante para a história do que os primeiros. É esse o caso do músico alemão Holger Czukay, co-fundador dos icónicos Can, uma das formações responsáveis pela incorporação da electrónica no universo rock, e figura decisiva para se entender alguns caminhos da música das últimas décadas, que morreu esta terça, aos 79 anos.

Foi o jornal alemão Kölner Stadt-Anzeiger a avançar com a notícia esta terça-feira à noite. O músico foi encontrado morto no estúdio original dos Can, que era antes uma sala de cinema, perto de Colónia, e que Czukay convertera há alguns anos na sua residência. As causas da morte são ainda desconhecidas. É a segunda perda do grupo este ano, depois de um outro importante membro fundador, o baterista Jaki Liebezeit, ter morrido em Janeiro

Em Abril deste ano, no Barbican de Londres, membros do grupo haviam-se reunido para um concerto comemorativo especial dos 50 anos, na companhia da London Symphony Orchestra e de alguns convidados (como Thurston Moore e Steve Shelley dos Sonic Youth) e em Junho foi lançada a compilação Can – The Singles, sem que Holger Czukay tivesse participado em qualquer dessas acções.

Figura algo excêntrica, divertida e generosa, com quem tivemos oportunidade de falar por duas vezes, era um prolífico inventor, tendo estudado alguns anos com Karlheinz Stockhausen, criando pontes entre as vanguardas e as linguagens pop, e acabando por se tornar num pioneiro das técnicas de sampling nos anos 1960, que na altura envolviam um laborioso processo de corte-e-colagem, antecipando a forma como muita da música contemporânea acaba por ser criada.

Foi em 1969 que lançou o álbum a solo Canaxis, que ainda hoje é considerado pioneiro na introdução de técnicas de colagem e também na apropriação das chamadas músicas do mundo, quando a controversa designação ainda não era utilizada – mais tarde, músicos que acabaram por ter relevância na abertura dessas fronteiras, como Jah Wooble, Jon Hassell ou o Brian Eno e o David Byrne do marcante álbum My Life In the Bush of Ghosts (1981), haveriam de se referir a esse disco como uma obra fundadora com influência no seu percurso. 

Nos Can era a figura central, o homem do baixo, embora fosse um multi-instrumentista e um estudioso das propriedades sonoras, não surpreendendo que fosse dele a responsabilidade pela gravação e edição final do som do grupo, desde o álbum inicial, Monster Movie (1969). Com os Can viria a criar nove álbuns, o último dos quais em 1977 com Out Of Reach, saindo pouco depois para se focar no seu percurso solitário, lançando logo de seguida Movie! (1979), um dos seus mais relevantes álbuns a solo que foi reeditado o ano passado.

O seu último álbum em nome próprio é Eleven Years Innerspace de 2015, tendo encetado ao longo dos anos inúmeras colaborações (de David Sylvian aos Eurythmics, passando por Jah Wooble ou Brian Eno), quase sempre guiadas pelo sentido da descoberta, pela criação de ambientes, pela utilização das técnicas de sampling ou pela avaliação muito própria de escolas como o minimalismo. Na última vintena de anos voltou a ter grande actividade, principalmente pela devoção prestada pelas novas gerações das electrónicas dançantes ou ambientais ao rock alemão (krautrock) dos anos 1970 e às sonoridades mais cósmicas, tendo-se apresentado por exemplo no Lux, em Lisboa, em 2010, com 1.ª parte dos portugueses Gala Drop.

Nessa altura, em entrevista, dizia-nos que os Velvet Underground haviam sido o grupo decisivo para os alemães optarem pela via do rock. “Os Velvet tinham uma forma de tocar meio dissonante, não eram grandes músicos ao princípio, mas tinham paixão e eram obsessivos com algumas ideias. Os Can também tinham isso. Foi com eles que percebemos que podíamos mesmo ser uma banda rock.”

Inicialmente, dizia na mesma entrevista, havia sido a música clássica a interessar-lhe, depois o jazz, “mas foi o radicalismo do pensamento de Stockhausen e a invenção da electrónica que acabaram por me interessar em determinada altura.” Esse interesse acabaria por marcar as suas aventuras a solo, mas também os Can, que estiveram quase sempre à frente dos seus pares dos anos 1970, com uma música que não se coadunava com os parâmetros mais óbvios do rock, com o grupo a experimentar com sintetizadores, técnicas de colagem, jazz, psicadelismos, música concreta e novos dinamismos rítmicos.

Com excepção do sucesso do single I want more (1978), mantiveram-se sempre como banda de culto, à semelhança dos grupos conotados com o krautrock ou com as electrónicas alemãs (Neu!, Cluster, Faust, Harmonia ou Tangerine Dream). Como lembrava Czukay na entrevista de 2010, a excepção foram os Kraftwerk – com quem se dizia os Can rivalizavam – que acabaram por ter maior protagonismo.

Mas na influência sobre as sucessivas gerações os Can e Holger Czukay em particular competem com os seus compatriotas, não hierarquizando entre Stockausen e música concreta com rock, na forma como definiu a arte do sampling antes deste existir ou na maneira como transformou a música do mundo no seu instrumento.

É caso para dizer que Holger Czukay está por todo o lado, de David Bowie aos pós-punk dos anos 1980 (Public Imaged Ltd, Joy Division), passando pelas sonoridades mais industriais (Cabaret Voltaire, Einsturzende Neubauten), ou pelo tecno e pelo renascimento do pós-punk e “disco” nos anos 2000 (LCD Soundsystem, Lindstrom), ou mesmo em alguma música pop portuguesa actual (Sensible Soccers, Ghost Hunt). Sinal de que morreu, mas o seu legado fica.

 

Sugerir correcção
Ler 1 comentários