Brasil desiste de julgar ex-vice-cônsul português acusado de burlar Igreja

Decisão rara no âmbito da cooperação internacional transfere processo para Portugal. Mandado de captura internacional de Adelino Vera-Cruz Pinto cancelado.

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MNE despediu antigo vice-cônsul em Outubro de 2011. daniel rocha

As autoridades brasileiras desistiram de julgar o ex-vice-cônsul Adelino Vera-Cruz Pinto, acusado no Brasil, em Setembro de 2011, de burlar em perto de um milhão de euros a Arquidiocese de Porto Alegre, no estado brasileiro de Rio Grande do Sul. A informação foi confirmada ao PÚBLICO esta semana por um juiz brasileiro, que adiantou que uma cópia integral do processo-crime existente naquele país foi remetida para Portugal.

A decisão, tomada há cerca de um mês e meio, implicou a revogação, no passado dia 23 de Março, da prisão preventiva decretada pelas autoridades brasileiras em Setembro de 2011 e que levou à emissão de um mandado de captura internacional, através da Interpol, igualmente cancelado. Adelino Vera-Cruz Pinto continua em Portugal e a aguardar o julgamento em liberdade, já que a renúncia da Justiça brasileira não implicou qualquer alteração das medidas de coacção (termo de identidade e residência) cá.

Uma decisão rara

Esta é uma decisão rara e visa evitar, entre outras coisas, que o suspeito consiga a absolvição por razões de ordem formal, invocando a violação do princípio internacional da proibição da dupla incriminação, que impede que um suspeito seja julgado e condenado mais do que uma vez pelos mesmos factos. No entanto, informa a Procuradoria-Geral da República (PGR), tal já aconteceu noutros casos pendentes no Brasil, na sequência de recusas de extradição.

A violação desse princípio foi invocada pela defesa do ex-vice-cônsul na contestação à acusação do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, que, em meados de Agosto passado, imputou ao antigo técnico superior do Ministério dos Negócios Estrangeiros – despedido em Outubro de 2011 – dois crimes de falsificação, um de burla e um de branqueamento de capitais. Isso mesmo foi referido ao PÚBLICO pelo advogado do vice-cônsul, João Nabais, que realça que ao longo dos mais de 30 anos de profissão nunca tinha visto um Estado renunciar à acção penal relativamente a um crime cometido no seu território.

Questionado já em Setembro passado sobre o risco da violação daquele princípio, a PGR garantia ao PÚBLICO que o Ministério Público (MP) português tinha informado “expressamente através de carta rogatória as autoridades brasileiras de que, uma vez que o arguido se encontrava em território português e não era admissível o pedido de extradição face ao tratado existente, era aplicável a lei penal portuguesa”. Nessa altura, o MP português já estava convicto que o processo não iria prosseguir no Brasil. 

A PGR realçava então que um representante da arquidiocese era assistente no processo, o que lhe permitia "exercer os seus direitos”. Em fase de execução de sentença, exemplificava a nota, a arquidiocese “poderá requerer a reversão dos bens apreendidos e arrestados para a lesada ou outras diligências”. Na resposta, o MP sublinhava que “todos os bens incluídos no requerimento de perda ampliada encontram-se em território nacional inclusive, os imóveis”, que o ex-vice-cônsul terá pago com o resultado da burla.

Num despacho assinado pela juíza brasileira Geneci Campos, a magistrada explica que foi o MP Estadual que pediu a transferência da acção penal para Portugal. “Trata-se de transferência de procedimento criminal de cunho voluntário, motivada pela provável frustração da persecução penal, tendo em vista da aproximação do lapso temporal que atingiria o prazo prescricional da pena em concreto, e com isso a inefectividade do provimento jurisdicional”, justifica a juíza, numa decisão de 18 de Março. E acrescenta: “Isso porque, conforme denúncia [a acusação], o réu possui nacionalidade originária portuguesa, e, mesmo havendo o prosseguimento da acção penal, e consequentemente uma eventual condenação, o réu não cumpriria pena em território brasileiro, uma vez que seria necessária sua extradição, facto impossibilitado” nos termos do tratado de cooperação assinado entre Brasil e Portugal, em 2002.

A juíza considera que esta decisão é forçosa para “atingir o real interesse da Administração da Justiça”, concordando com a “renúncia à jurisdição e ao direito à persecução penal, em favor do Estado de Portugal”, constatando que o suspeito fica sujeito à lei penal portuguesa, onde se encontra.

Em causa neste processo está o facto de o ex-vice-cônsul alegadamente se ter apropriado de perto de um milhão de euros que a Arquidiocese de Porto Alegre lhe entregou como caução de um donativo de quase quatro milhões de euros que seria atribuído por uma suposta organização não-governamental (ONG) belga, que teria relações com o Governo português e iria patrocinar a recuperação de duas igrejas de origem portuguesa naquela região brasileira.

Julgamento marcado para Março de 2017

O julgamento do ex-vice-cônsul esteve marcado para Janeiro passado, em Lisboa, mas acabou adiado sem data. Tal aconteceu, segundo a PGR, porque as autoridades brasileiras não cumpriram uma carta rogatória a pedir a audição de testemunhas nos termos pedidos. “Isto porque as testemunhas foram ouvidas pela polícia e não por um juiz, condição sem a qual os depoimentos não podem valer como prova”, refere a PGR. O juiz titular do caso no Brasil diz desconhecer a existência dessa carta. Entretanto, o tribunal marcou o início do julgamento para 1 de Março de 2017.

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