Partidos, maiorias e Democracia

O silêncio – traduzido na abstenção eleitoral – será o maior inimigo da democracia. Que os defensores da democracia o percebam a tempo.

No último semestre, os cidadãos portugueses foram presenteados como uma intensa actividade partidária, primeiramente no âmbito da campanha para as legislativas e, mais recentemente, no contexto da formação de dois governos – o de Passos Coelho e o de António Costa.

Em torno das discussões político-partidárias da campanha, estiveram sobretudo os temas dos impostos e do passado governativo de PS e PSD na condução dos destinos do país. Aqui e ali, em documentos produzidos pelas respectivas máquinas, debateram-se soluções e milagres para sempre débil economia portuguesa.

Já na contenda a propósito da formação dos XX e XXI Governos, os partidos trouxeram à colação, única e exclusivamente, divergências (reais e aparentes) sobre temas económicos e fiscalidade. Ao nível político, centrou-se o debate na questão da “maioria”. Em face dos resultados eleitorais, quem teria, afinal, a maioria? De quem seria a legitimidade para governar? A resposta, para efeitos de formação de Governo, no actual quadro constitucional, faz-se e fez-se no Parlamento, independentemente da maior ou menor razoabilidade das posições dos partidos envolvidos.

Pois bem, questão diferente, sobre a qual nenhum partido revelou ou revela interesse em debruçar-se, tem que ver com a verdadeira maioria: aquela silenciosa, crescente nos sucessivos actos eleitorais, afastada do voto, mas talvez não da preocupação com Portugal e o seu futuro. Aquela que, em outros países, surge repentinamente para votar, em torno de um movimento ou partido, gerador de esperança, com promessas fáceis e cenários de futuro positivos. Refiro-me, claro está, aos abstencionistas, “vencedores” com larga maioria das últimas eleições, perigosamente esquecidos pela classe política…

De referir que, segundo um estudo divulgado recentemente pela Presidência da República, apenas 16,6% dos portugueses revelam satisfação com a democracia, enquanto 50,8% avaliam negativamente a democracia portuguesa. Na população jovem, o grau de insatisfação atinge entre 40% a 50% dos cidadãos.

Assim sendo, hoje mais do que nunca, em face das taxas de abstenção verificadas, impõe-se responder ao fenómeno, causado pela desconfiança generalizada dos cidadãos nos políticos, nos partidos e nas instituições. Sendo certo que, tal só será possível através de mudanças no sistema político, centradas no aprofundamento da democracia participativa.

Refiro-me à tomada de medidas concretas, destinadas à intensificação da participação política dos cidadãos em Portugal e à reconquista da confiança dos portugueses nos seus representantes. O leque de medidas enquadráveis no critério referido permitiria uma longa dissertação, que foge ao âmbito deste escrito, pelo que deixarei apenas pistas para desenvolvimento e debate.

Em primeiro lugar, constatando-se a progressiva diminuição da participação eleitoral dos cidadãos, potenciada pelo sentimento geral de falta de representatividade, há que reflectir sobre a eventual necessidade de alteração do actual sistema eleitoral. Com efeito, não será descabido ponderar a introdução de círculos uninominais ou, como recentemente defendeu Braga da Cruz, de um sistema de voto duplo, cada um para eleger metade do parlamento (um deles com a aplicação do método maioritário uninominal e outro de representação proporcional). 

Na perspectiva de aproximação às populações, justifica-se pensar no reforço do poder local. Em especial, a expansão das comunidades intermunicipais pelo território, que definam políticas regionais, de forma mais eficiente que o Governo central. Apesar dos constrangimentos jurídico-constitucionais, o rumo devia ser no sentido de as comunidades intermunicipais terem competências nas áreas do ambiente, ordenamento do território, educação, transportes ou fundos comunitários. Com efeito, o actual Governo terá um papel fulcral na dinamização desta modalidade de associativismo municipal.

Ainda neste contexto, deve servir de referência para outras experiências o exemplo dos orçamentos participativos, enquanto forma de envolvimento dos cidadãos em decisões relevantes. Assim, deve ser ponderada a realização de referendos locais (cfr. art.º 240.º da Constituição), em matérias da competência municipal.

Os partidos políticos não podem deixar de “dar o exemplo”. Nessa medida, a realização de eleições primárias para a escolha dos seus candidatos e a integração de independentes com reconhecido mérito nas listas de deputados constituem possíveis formas de abertura dos partidos à sociedade. A confiança do povo será tanto maior quanto mais transparente for a actividade partidária e política. Nesse contexto, os partidos devem estar sujeitos a uma fiscalização mais apertada pela Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, a qual deverá dispor de meios adequados para realizar auditorias profundas aos partidos, para prevenir as situações de endividamento descontrolado hoje existentes. Atenta a situação financeira do país e o desgaste dos eleitores com as campanhas eleitorais, deve ser repensado o modelo de financiamento público dos partidos.

A transparência exigirá também o aperto dos regimes de incompatibilidades, sendo apreciável a recente aprovação de legislação que prevê que, nos três anos subsequentes ao exercício de cargos políticos, o titular não pode exercer funções em empresas que tutelou. A este nível, a matéria das incompatibilidades dos deputados com o exercício de certas profissões merece revisão, tal como a designação dos titulares de cargos públicos deve, cada vez mais, ser escrutinada, tanto por entidades como a CRESAP, como pelo Parlamento (por exemplo, através das audições parlamentares). O combate à corrupção é outro tema prioritário, que impõe a adopção de medidas que tornem menos apelativas as práticas corruptas: pela adopção de mecanismos de controlo mais exigentes ao nível do Estado, bem como pela implementação de um Plano Nacional Contra a Corrupção, nele se incluindo o reforço dos meios para a investigação da corrupção e/ou a criação de uma entidade para o combate à corrupção, composta por pessoal qualificado, não apenas em termos policiais, mas também com formação jurídica e financeira para a criminalidade de elevada complexidade.

Finalmente, refira-se que a educação cívica e política dos cidadãos e a sensibilização destes para a importância de participar politicamente tem de começar nas escolas: a árvore da democracia tem de ser regada ab initio! Quer pela criação de disciplina de formação cívica nas escolas (no ensino básico), como pelo incentivo ao associativismo ou ao voluntariado (valorizando os estudantes com essas actividades) ou ainda pela promoção de estágios não profissionais em entidades públicas (acessíveis a estudantes do ensino secundário e universitário).

O silêncio – traduzido na abstenção eleitoral – será o maior inimigo da democracia. Que os defensores da democracia o percebam a tempo. Reflectindo, mas sobretudo agindo.

Advogado

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