Mário Centeno: “Palavra dada, palavra honrada”?

Falar em “provas”, com o sentido que se lhes deu, induz em erro. A demissão não é uma pena nem uma sanção jurídica: é uma consequência política!

1. A situação em que se pôs o ministro das Finanças configura um caso sério de responsabilidade política e ética. Por mais voltas que se dê, numa democracia sã e madura, a responsabilidade tem de ser assumida. Ponto final.

São muitos os que procuram menorizar o assunto e ensaiam contorná-lo, recorrendo a toda a sorte de argumentos. Procuram reduzi-lo a mera intriga e ruído, consideram-no pertinente mas já ultrapassado, arengam com precedentes similares em que nada sucedeu, tratam o processo político como se o Parlamento fosse um tribunal, invocam a razão de Estado em que interesses superiores do país recomendam o decretamento da amnésia geral.

2. É completamente destituída de sentido a acusação de que a oposição quer desestabilizar o processo de recapitalização da Caixa. Todo o imbróglio da Caixa é da responsabilidade exclusiva do Governo, do secretário de Estado Mourinho Félix e do ministro Mário Centeno. É também diletante a versão hipócrita, cúmplice e ressequida de Bloco e PCP, que afinal pedem demissões em função da ideologia e da conveniência. E mais delirante vem a ser a versão amalgamada do primeiro-ministro de que se quer ofuscar os gloriosos feitos orçamentais do Governo e a estatura heróica do ministro. Quem introduziu incerteza, instabilidade e turbulência, reiterada e repetidamente, por detrás dos biombos e na praça pública, foi o Governo. Se a oposição já não pode exercer o seu dever de escrutínio e de controlo político e parlamentar, que papel lhe cabe na nossa democracia?

3. É também peregrina a ideia de que, porque a Caixa tem uma nova administração que faz o seu caminho, a grave falha política e ética do ministro das Finanças “caducou” e já não tem de ser sancionada por ser extemporânea. Se tivesse sido em meados de Novembro, ainda vá que não vá; agora é tarde! Eis um argumento bizarro, que não resiste à reflexão. A pensar assim, nunca nenhum ministro se demitiria a não ser em tempo real ou em “flagrante delito”. Em qualquer democracia, caem ministros por actos e omissões graves cometidos no exercício de funções (ou até antes dele), seja porque esses actos e omissões são revelados, seja porque evoluem na sua evidência, seja porque se tornam entretanto insustentáveis. O tempo em que se pratica um acto não diminui a gravidade do mesmo. A lógica do argumento seria, pois, a seguinte: mentir à segunda dá demissão; mentir à sexta, já não.     

4. Não menos esdrúxula é a tentativa de converter o debate sobre a responsabilidade política e ética numa modalidade de “julgamento” num “pseudo-tribunal”. A ruidosa exigência de “provas” (feita pelo primeiro-ministro) e até de uma “confissão” escrita (sugerida pelo Presidente da República, mas que redunda numa faca de dois gumes) inculcam a ideia de que estamos perante um processo judicial, tramitado com uma escala do valor hierárquico das provas. Já só falta clamar por uma escritura pública ou pela certificação notarial da assinatura. Ora, a responsabilidade política nada tem que ver com a responsabilidade jurídica ou legal (criminal ou outra). O Parlamento não é um tribunal e a opinião pública não é o sistema judicial. Por isso mesmo, não vejo vantagem no aviso do CDS, técnico-juridicamente correcto, de que a falsa declaração em Comissão de Inquérito pode ter relevância criminal. A questão é política, é ética; não é e não deve ser jurídica.  

Nada disto significa que não tenha de haver e não haja – que os há e abundantes – factos, relações, comunicações, comunicados e declarações que mostram à saciedade a promiscuidade entre o privado e o público, que atestam a vontade de excluir os gestores da entrega da declaração ao Tribunal Constitucional, que patenteiam fortes contradições e dissimulações. Não subsiste qualquer dúvida de que houve um acordo para limitar as declarações de transparência àquelas que são exigíveis à banca em geral, por isso decorrer expressamente do comunicado do Ministério das Finanças de 25 de Outubro e de declarações orais coevas do ministro e do secretário de Estado. Depois desses dias, sobreveio o carrossel de negações, contradições, infirmações e desmentidos até chegarmos a este triste estado. A avaliação dos dados que pautam o comportamento domMinistro é política e é ética, não é jurídica. Falar em “provas”, com o sentido que se lhes deu, induz em erro. A demissão não é uma pena nem uma sanção jurídica: é uma consequência política!  

5. Totalmente improcedente é outrossim a alegação de que, no passado, em Comissões de Inquérito e fora delas, outros governantes mentiram e nada aconteceu. Não duvido que isso tenha ocorrido. Mas não é por ter havido uma má prática no passado que idêntica má prática no presente deve ser legitimada, iludida, perdoada e repetida. De resto, nem todos se apercebem, mas os tempos não estão de feição para pactuar com a permissividade e o laxismo no cumprimento dos mais elementares deveres de ética republicana e coerência política. E a questão ganha ainda mais acuidade quando o primeiro-ministro chamou a si um padrão ético de referência, espelhado na divisa, que não se cansa de repetir, “palavra dada, palavra honrada”. Será que a respeito desta questão, o ministro das Finanças pode fazer jus a esse lema? Responda, Mário Centeno, responda: no caso da Caixa, a palavra dada foi mesmo palavra honrada?

6. O assunto em apreço não é um acidente, um incidente ou um caso menor. É o sintoma de um mal maior. O Governo Costa percorre os meandros do poder com um perigosíssimo sentido da insindicabilidade e até da impunidade. É um dos corolários da ideologia “costista” da “nova normalidade”, do paradigma do “neo-normal” – a que hei-de voltar. Tudo é habitual, tudo é normal, tudo é regular, tudo é banal, nada é grave, nada é pernicioso, nada tem mal. À guisa de Pangloss, até o que é mau é bom. Chegou a hora de pôr termo à escalada da irresponsabilidade e à espiral de permissividade. O tempo é o da responsabilidade, da responsabilidade política.

SIM e NÃO

SIM. Mariano Rajoy. Depois de um ano de impasse, de novo a chefiar o Governo, reeleito no sábado líder do PP espanhol, com um crescimento económico invejável, é hoje a referência entre os líderes do Sul da Europa.

NÃO. TAP. O favorecimento de Vigo face ao Porto e o modo como as linhas abandonadas no Porto são aproveitadas pela concorrência mostra que a estratégia da companhia de bandeira não é nem racional nem nacional.

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