As fronteiras do litígio

Não podem os partidos ou movimentos, embora possam discutir e discordar, impor-se aos critérios editoriais de cada órgão de informação.

Está a ter um desacerto completo a tentativa dos partidos maioritários na Assembleia da República de conceberem um decreto-lei que venha regular os procedimentos dos media na cobertura das próximas eleições legislativas (períodos de pré-campanha e de campanha propriamente dita). Não deixa de ser estranho que, decorridos quarenta anos no nosso processo democrático, este assunto, qual magna questão, esteja na agenda dos propósitos legisladores da instituição mor da garantia da liberdade, indispensável pilar da democracia. É um indício claro da incomodidade que atravessa o estado de consciência daqueles que são notórios e principais responsáveis actores do processo democrático.

1. Uma mútua desconfiança

Dois incidentes de percurso agravam o diferendo existente: a forma como decorreu a cobertura das últimas eleições e o fiasco do projecto-lei que tentava estabelecer novas regras para vigorarem no próximo acto eleitoral. A reacção forte dos directores de informação de 20 meios de comunicação social fez os três partidos PSD, CDS, PS, retirarem o documento. Nestes últimos dias, PSD e CDS fazem saber que preparam outro documento. Este sem a participação do grupo parlamentar do PS que fora acusado de ser o autor responsável do anterior infeliz texto com a triste designação de ficar colado à instauração de um outro e incompreensível regime de "censura prévia".

De novo, os vinte directores de informação dos meios de comunicação social já vieram rejeitar o novo projecto que acusam de manifestar "um receio injustificado do poder político quanto ao exercício livre da actividade jornalística, próprio de outros tempos", que confunde jornalismo e propaganda política e "mantém a tentação de impor freio às redacções".

Entretanto, um pouco agastado com esta reacção, considerada intempestiva, o líder do grupo parlamentar do PSD, Luís Montenegro, veio declarar que este último documento era ainda um projecto e inacabado. A controvérsia continua. E é caso para se dizer que “o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita”.

2. As três partes interessadas

Efectivamente, há aqui três partes interessadas: responsáveis pela legislação, meios de comunicação social e cidadãos. E volta a ser por estes últimos que devo meter o bedelho na discussão do assunto.

Eu creio que o tratamento deste assunto está extremamente enviesado. Por absurdo, podem alguns mais estranhos a esta questão admitir que se está entre os extremos de regrar (parece-me o termo mais adequado) os limites sem limites da liberdade de informação e a sempre repetida tentação de amordaçar a comunicação social. Ora, para além do estabelecido na Constituição, há um conjunto de leis (Lei da Imprensa, Lei da Rádio, Lei da Televisão) e de determinações que regem uma comunicação social livre, tais como os Estatutos Editoriais, o Código Deontológico do Jornalista, etc. que já prescrevem regras para o cumprimento do correcto exercício de informar. Para além disso, há as entidades reguladoras como a ERC Entidade Reguladora para a Comunicação Social, o Conselho Deontológico do Sindicato, a Comissão da Carteira Profissional, e ainda tudo o que, porventura, a este propósito, está prescrito no Código Civil, no Código Penal e no Código do Processo Penal. (E os jornalistas do PÚBLICO dirão: e há ainda o provedor).

Perante a existência desta panóplia de regimentos reguladores subsiste a pertinência de instaurar o que já ouvi denominar um Código de Conduta Editorial para as Eleições?

Há, dirão alguns, pois no decorrer de um período de propaganda eleitoral muitos partidos se queixam de serem lesados. E eu direi muitos cidadãos também se queixam por sentirem os seus partidos ou movimentos, fora do âmbito da constelação principal, ignorados. Mas será que disposições especiais para este período vão contrariar os comportamentos desviantes nesta matéria?

3. Propaganda e critérios editoriais

Antes de mais, interessa pautar algumas das fronteiras deste litígio. Primeiro, é necessário não confundir, como dizem os directores de informação, propaganda eleitoral e informação. Para a propaganda existem normas. Para a propaganda, os tempos de antena e de espaço têm de estar garantidos com equidade. Não podem os partidos ou movimentos, embora possam discutir e discordar, impor-se aos critérios editoriais de cada órgão de informação.

Por outro lado, importa não ignorar, que os media preocupados pelas suas audiências em fuga permanente, valorizam critérios de notoriedade dos actores políticos, de conflitualidade e de fait-divers, esses pequenos factos insólitos de fácil consumo e grande atractividade.

Não será por acaso que esta semana me fizeram lembrar, e me enviaram o texto em construção definitiva, o projecto Para uma Carta de Princípios do Jornalismo na Era da Internet, um projecto desencadeado por vários jornalistas e investigadores da área da comunicação/informação desde o ano de 2012 apresentado e discutido em várias universidades, institutos politécnicos e fóruns jornalísticos. O documento parte da premissa de que existem normas para o exercício de um jornalismo sério, competente, independente, isento. A prática é que, por vezes, é esquecida. Sofre infracções. Entre esses 11 princípios da referida Carta, enunciarei resumidamente alguns que me parecem ser de recordar no período de uma campanha eleitoral, onde, efectivamente, se joga muito do futuro do nosso futuro de cidadãos e do país: O jornalismo deve manter-se leal aos cidadãos, estimulando o debate e a construção de opinião; o jornalismo deve dar voz e visibilidade a cidadãos, grupos e comunidades mais esquecidos; os cidadãos têm direitos e também responsabilidades no que diz respeito à informação noticiosa. Normalmente, os cidadãos reclamam mais sobre os direitos do que sobre as responsabilidades.

Também não terá sido de forma despicienda que um meu colega destas andanças transcreveu para o meu correio electrónico um artigo do jornal digital Observador, em que este meio de comunicação recordava a tradição dos órgãos de comunicação social no Reino Unido declararem antecipadamente quem apoiam nas respectivas eleições.

Não me parece que, por cá, esta declaração pública seja fácil instituir. Não está enquadrada na nossa tradição. A crise que afecta os media, creio eu, agravar-se-ia em relação a tiragens e publicidade. Já aconteceu a propósito de eleições presidenciais de um clube de futebol. Mas em relação a forças partidárias, a nossa democracia tem ainda direitos de afirmação ou escolha partidária muito reservados.

Seja como for, subsiste uma fronteira neste litígio que o poder legislativo com sede na Assembleia da República dá indícios de não entender com quem deve discutir o assunto. Fala com os empresários, os presidentes dos conselhos de gerência, ou das plataformas dos media, ignorando os directores de informação. São provavelmente tiques de poder. A Lei é clara que quem manda e se responsabiliza nos conteúdos da informação são os directores.

Provedor dos Leitores do PÚBLICO

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