Nicole e o medo de morrer

Nicole era uma mulher trans, corpulenta, sorridente, com lentes de contacto azul-turquesa e o cabelo pintado de loiro sujo. Fugiu de casa aos 16 anos, porque sofria maus tratos.

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Kyle/Unsplash

Há dez anos, no Rio de Janeiro, na faculdade, para a disciplina de Jornalismo, fiz um trabalho acerca da Vila Mimosa, um bairro conhecido pela prostituição. O trabalho consistia em traçar um perfil de alguém que morasse nesse bairro. Assim que cheguei lá com o meu grupo, fui abalada pelo maior medo de morrer que alguma vez senti. Queria focar-me na reportagem, mas estava paralisada.

Eram duas horas da tarde, o ambiente era mórbido e saturado. Moscas voavam, um funk desconfortável tocava, alto demais para aquela hora, mas as pessoas, como zombies, alienadas pelas drogas e pelo calor entorpecedor, pareciam ignorar ou aceitar. Não se via muita gente. As poucas pessoas que se encontravam na rua lançavam-nos olhares desconfiados. Eu, desesperada, olhava em redor à procura de uma forma de sair dali. Os meus colegas não estavam tão incomodados, pelo menos pareciam mais interessados em recolher as histórias. Talvez seja essa a diferença entre quem é jornalista e quem não é. Eu estava, sobretudo, com medo, e mantive-me o mais perto deles possível.

Um homem, que se declarou miliciano e que tinha uma pistola bem visível à cintura, prontificou-se a contar a sua história e levantou a camisa para nos mostrar as suas cicatrizes, cicatrizes das 23 balas que um dia o tinham atingido. Lembro-me de pegar no meu caderninho e de escrever “vinte e três balas” muito devagar, como se apontasse um item de uma lista de supermercado, tentando parecer calma e concentrada, quando a minha temperatura corporal subia e me sentia prestes a cair para o lado.

Eu diria que tudo aquilo era surreal, se não fosse, infelizmente, muito real. Um lugar onde a realidade nos cospe com violência. Dificilmente se encontra beleza num lugar assim. No café, Lúcia, a proprietária, servia os clientes. Acessível e simpática, se bem que visivelmente dormente, Lúcia ofereceu-nos o seu bolo caseiro e algumas informações sobre o seu modo de vida. Também ela era prostituta. Tinha começado na adolescência e as dificuldades económicas não lhe permitiram parar. Contou-nos que, quando havia escassez de dinheiro, tinha de se revezar entre o bar e os quartos, “sempre em drogas”. Enquanto conversávamos com Lúcia, conhecemos também Ana Paula, numa pausa do trabalho. Ana Paula estava grávida, com uma grande barriga. Tinha a minha idade, nessa altura, 19 anos. Continuava a trabalhar, por necessidade.

Num canto, algumas mulheres faziam as unhas e conversavam. Quando as abordámos, responderam: “Estamos fartas das vossas entrevistas.” Nesse momento, ouvimos uma voz vinda de uma mesa: “Eu falo, adoro conversar!” E foi assim que conheci Nicole. Levou-nos até ao seu quarto, para falarmos.

Nicole era uma mulher trans, corpulenta, sorridente, com lentes de contacto azul-turquesa e o cabelo pintado de loiro sujo. Quisemos ouvir a sua história, e ela quis contá-la. Fugiu de casa aos 16 anos, porque sofria maus tratos. “Um dia, experimentei vestir-me de mulher, gostei e não parei”, contou. Quando se viu na rua, a sua primeira e única saída foi a prostituição, da qual viveu por muitos anos.

Nessa época, com 29, vivia mais recolhida devido a um desastre que a fez perder uma perna. Nicole foi baleada por um homem enquanto saía de um trabalho. Desde então, a sua condição não lhe permitia viver a mesma vida, principalmente por causa do perigo: “Corremos muitos riscos: há pessoas violentas, que mudam de humor do nada, que lidam mal com as drogas, psicopatas e doentes mentais.” Apesar de estar afastada, Nicole confessou: “De vez em quando dou umas pescadinhas. Mas não vou para canto longe e já não me meto em carros de estranhos.” Nicole sofreu de dependência química, depressão e síndrome do pânico. Vivia numa casa com as paredes descascadas de cimento inacabado e tijolo, onde recebia os clientes ocasionais, e onde moravam, também, ratos.

Nunca me vou esquecer da Nicole. Agarrou-nos o braço, no fim da entrevista, e disse, a chorar: “Vocês vão me tirar daqui?” Foi devastador perceber que ela falava connosco com essa esperança. E devastador perceber o quão pouco podíamos fazer por ela.

Eu estive na Vila Mimosa uma tarde e tive medo de morrer. E não sou trans, nem prostituta, nem dependente química, nem tenho nenhuma deficiência motora.

Não conto esta história para entrar em discussões sobre a arte. Estas, embora válidas, parecem-me, neste momento, tão insignificantes quanto o nosso pequeno trabalho de faculdade naquela época. Falar sobre arte dos nossos sofás é legítimo e importante. Mas não é tão desconfortável. Não é tão difícil. E não é tão necessário como falar sobre soluções para ajudar as pessoas mais marginalizadas e violentadas da sociedade.

Não sei muita coisa. Não sei, aliás, nada sobre esta realidade. Foi o que percebi nesse dia. Estou tão distante dela quanto possível. Mas uma tarde foi suficiente para entender que ninguém é tão vítima de ódio, violência física, ameaças e homicídios como as pessoas trans e as prostitutas. E foi, sobretudo, suficiente para ver o desespero mais profundo que existe. O desespero que leva a que se chore e que se agarre o braço de estudantes imberbes.

Quem está desesperada, grita. E, muitas vezes, não se grita só para se ser ouvida. Grita-se para que as tirem dali.

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