A imoralidade da raspadinha

Cabe assim ao Estado humanizar-se e deixar de lucrar com a desgraça alheia, porque amparar os mais desfavorecidos não é dar com uma mão aquilo que se tirou com a outra.

Foto
Nuno Alexandre

Estive recentemente em Portugal. Vindo do aeroporto, a paragem de autocarro que me deixa mais próximo de casa fica num café numa aldeia vizinha da minha, pelo que por lá fiquei enquanto aguardava pela minha boleia. Pouco depois de mim, entrou um freguês que, acercando-se do balcão, pediu um café e uma raspadinha.

Após vigoroso raspar, o resultado foi um triste insucesso. Não satisfeito, pediu outra raspadinha, e outra, e outra, e mais umas quantas. Apesar de dois ou três míseros êxitos, que pouco mais renderam que o custo da própria raspadinha, o desfecho mais frequente foi semelhante ao da primeira tentativa. Perdi a conta a quantas raspadinhas foram compradas, mas vi que o pagamento foi feito com uma nota de 50€ e o troco mais não foi que meras duas ou três moedas. Quase 50€ e tudo quanto aquele homem levou para casa foi uma dose de cafeína no corpo.

Apesar de presumivelmente quase conterrâneo, não conheço o protagonista desta história. Bem sei que as aparências muitas vezes enganam, mas, se tivesse de arriscar, diria que se tratava de um senhor de poucos recursos, provavelmente um daqueles que entra nas estatísticas como fazendo parte dos 2.3 milhões de pobres em Portugal. Em situação de carência, provavelmente vê nos jogos de azar a possibilidade de dinheiro fácil, milhares de euros que poderão, do nada, mudar a sua vida.

O caso deste senhor, infelizmente, não é original. E mesmo o raciocínio por detrás de quem aposta não é totalmente inverosímil. De facto, tanto dinheiro pode mesmo proporcionar sonhos tão excêntricos como ter uma vida digna.

O problema, contudo, é que a probabilidade de isso acontecer é tão remota que qualquer euro gasto em jogos de azar é quase invariavelmente desperdiçado. Pior: isto transforma-se num drama social se se tiver em conta que 1) estamos perante algo com potencial aditivo e 2) que, segundo dados de 2019 fornecidos pela Santa Casa da Misericórdia, 77% dos apostadores são pessoas de classe média-baixa ou baixa. Pobres, portanto.

Quem como eu se deliciou com a série Pôr do Sol pôde rir-se com o efeito do vício das raspadinhas na personagem Diogo, mas, verdadeiramente, esta foi uma sátira muito bem conseguida, pois, não sendo as raspadinhas quimicamente uma droga, os efeitos sociais nocivos desta adição estão lá todos.

É claro que, se o status quo há tantos anos se mantém, boas razões há para isso, pelo menos na óptica do Estado. O Orçamento de Estado deste ano contava arrecadar cerca de 437 milhões de euros através de impostos indirectos sobre lotarias e sobre prémios de jogo, às quais se soma a fatia das receitas da Santa Casa da Misericórdia que financia os Ministérios do Governo ou os projectos de natureza social da própria instituição (como são exemplo os lares de idosos), um valor que em 2021 se cifrou em cerca de 816 milhões de euros.

São, no total, cerca de 1,2 mil milhões de euros ao serviço do Governo. Dá para, por exemplo, cobrir duas vezes todo o orçamento para a Cultura em 2023 (se não for contabilizada a quantia destinada à RTP) e ainda sobram quase 200 milhões. É, simplesmente, demasiado tentador... Contudo, considerando que parte significativa desta receita provém de pessoas pobres, são no fundo os pobres quem está a financiar os serviços sociais para todos.

É, portanto, uma completa subversão daquilo que deviam ser políticas públicas. É o chamado moral hazard, um caso em que o Estado, que devia zelar pelos mais desfavorecidos, aproveita-se descarada e dissimuladamente da sua desinformação para financiar, entre outros, um sistema de segurança social deficiente que há muito clama por reformas profundas.

Mas regressando à problemática das raspadinhas e dos jogos de azar em geral, como liberal que sou, não defendo abordagens proibicionistas. Acredito na literacia, na educação. Acredito na eficácia de campanhas que sirvam de abre-olhos, e gostaria por isso que os jogos de azar fossem objecto das mesmas como são o álcool ou o tabaco, que no fundo informem e eduquem mas coloquem o ónus nos indivíduos. Todavia, nada disto seria suficiente.

É também necessário acabar com esta promiscuidade entre receita do Estado e jogos de azar. É premente mudar a filosofia de negócio da Santa Casa, que a toda a hora vende sonhos quase predatórios na televisão para custear a sua acção (por muito nobre que esta seja, que o é).

Que não restem dúvidas: usar uma fragilidade humana para financiar serviços sociais não é uma genialidade, é apenas uma imoralidade. Cabe assim ao Estado humanizar-se e deixar de lucrar com a desgraça alheia, porque amparar os mais desfavorecidos não é dar com uma mão aquilo que se tirou com a outra.

Sugerir correcção
Ler 15 comentários