Impingiram-me uma raspadinha nos Correios. Porquê?

Lembrei-me dos meus doentes com jogo patológico, termo médico para quem tem o vício das apostas a dinheiro, sejam elas no casino, apostas desportivas ou raspadinhas. Recordei o sofrimento dos doentes e das famílias e as dezenas de horas que a minha equipa investe na prevenção de recaídas.

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Miguel Manso

Cometi o erro de ir ao balcão dos correios no intervalo de almoço. Sabia que, a essa hora, poderia ter de esperar na fila. Mas a data limite para o levantamento da minha encomenda estava já perigosamente próxima. Quando tirei a senha, constatei horrorizada que tinha 17 pessoas à minha frente na categoria de “Atendimento Geral”. Desisto? É melhor… Esperar é uma experiência penosa para os intrépidos e roedores de unhas. Aguenta, Inês! Havia muita gente na sala de espera e ficar a observar pessoas é uma delícia para quem se interessa pelo comportamento humano e suas variações em ré menor. Fico, pronto.

Observo.

Vi dinheiro depositado, envelopes pesados, portagens liquidadas e encomendas recebidas. Tarefas muito diferentes na sua natureza, mas todas elas terminavam da mesma forma: “Não quer comprar uma raspadinha?”

Fiquei confusa primeiro, depois zangada. Porque raio se vendem raspadinhas nos balcões dos CTT? Analisei detalhadamente as prateleiras à minha volta. Ali vendia-se de tudo um pouco – cabos USB, jogos de Playstation, CD de música, várias souvenirs com padrão de azulejos e livros para todos os gostos. E ao lado de cada funcionário, lá estavam elas, coloridas e apetecíveis: as raspadinhas. A mim, enquanto psiquiatra, soar-me-ia muito melhor que o último apelo ao consumismo do cliente fosse “Não quer comprar este livro de auto-ajuda para ter uma vida mais saudável e feliz?”. Mas o apelo era sempre o mesmo. A proposta era só uma: leve uma raspadinha, senhora! Achei caricato, no mínimo. E a verdade é que elas saíam da sua montra, umas atrás das outras, orgulhosas e gulosas, para as mãos de quem só queria mandar uma carta registada por correio azul.

Nesta altura, comecei a sentir-me incomodada. Lembrei-me dos meus doentes com jogo patológico, termo médico para quem tem o vício das apostas a dinheiro, sejam elas no casino, apostas desportivas ou raspadinhas. Recordei o sofrimento dos doentes e das famílias e as dezenas de horas que a minha equipa investe na prevenção de recaídas. Há que treinar a pessoa para ser capaz de resistir à tentação.

No caso dos casinos e das apostas online, a Regulação e Inspecção de Jogos em Portugal prevê a possibilidade de o doente solicitar a sua auto-exclusão, ficando assim impedido de entrar nos casinos ou de aceder aos sites de jogo online. Esta medida de saúde pública faz parte de um decreto-lei que visa proteger os portugueses que sofrem de jogo patológico. Desde que o vício não seja… as raspadinhas. Para essas, não só não há travões previstos pela lei, tão importantes numa fase inicial do tratamento, como também há armadilhas constantes ao virar da esquina, que nos entram pelos olhos (e bolsos) adentro quando menos se espera.

O jogo é como o álcool. Não há nada de errado nele desde que seja consumido em moderação. Há quem jogue e quem beba sem nunca ficar viciado. É um fenómeno cultural que não se quer proibido, mas sim regulado para protecção de quem é vulnerável à dependência. Ora, impingir raspadinhas aos clientes dos correios, entre os quais estarão alguns dos meus doentes, não é uma medida de saúde pública. Seria o mesmo que promover a venda de Favaios com cerveja nas repartições das Finanças.

Chegou a minha vez, por fim. Sou obrigada a interromper a minha tempestade furiosa de pensamentos. Recebo a minha encomenda dentro de uma caixa de cartão. Assino, como no bilhete de identidade, sim, sim. Está tudo? Sim, menina. Já agora, não vai uma raspadinha?

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