Censura na terra da democracia

Convido a senhora von der Leyen a ler minhas reportagens e a desafio a encontrar qualquer informação falsa ou ainda que duvidosa. Se lograr êxito, rasgo meu diploma.


Há menos de duas semanas, Portugal comemorou 17.500 dias de democracia. Para quem? Há um mês, estão censuradas, no país, mais de 160 reportagens produzidas por mim ao longo de um ano e quatro meses como correspondente estrangeiro, em Lisboa, da Sputnik Brasil. Nenhuma delas diz respeito à Rússia ou à Ucrânia. Trata-se de matérias de interesse de Portugal, Brasil e suas relações com a União Europeia.

Entre outros conteúdos banidos, estão entrevistas que fiz ao presidente Marcelo Rebelo de Sousa e ao então ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva, organizadas pela Associação de Imprensa Estrangeira de Portugal (AIEP). Mais do que isso, foram censuradas denúncias que faço frequentemente sobre xenofobia, racismo, discurso de ódio, violência contra mulher e crianças, além de outras formas de preconceito em Portugal. A quem interessa me silenciar?

Curiosamente, a AIEP, ao qual sou filiado, silencia há um mês sobre a situação. Entretanto, outras entidades mais expressivas, como a Federação Europeia de Jornalistas e a Federação Nacional dos Jornalistas (do Brasil), já se posicionaram, desde o primeiro momento, contra a censura aos profissionais da Sputnik e a rotulação pelo Twitter de jornalistas como funcionários de “mídia controlada pelo Estado da Rússia”.

No dia 25 de Março, foi a vez de o Sindicato dos Jornalistas de Portugal emitir um comunicado com alerta sobre a grave situação dos profissionais da Sputnik em Portugal. Além da censura a nosso trabalho, seis redatores brasileiros, além deste correspondente luso-brasileiro, estão com seus salários bloqueados por bancos portugueses há um mês.

Vale ressaltar que as transferências foram feitas pela Sputnik entre 25 e 28 de fevereiro (com os comprovantes enviados a nós), antes, portanto, do bloqueio da Rússia no SWIFT. O ActivoBank, no qual três de nós temos conta, alegou, por email que “a transferência proveniente da Rússia não vai ser concretizada fruto das sanções impostas pela União Europeia”.

Ora, nenhum de nós é um bilionário russo. Pelo contrário, somos cidadãos luso-brasileiros que ganham, em sua maioria, pouco mais de 1000 euros, pagando impostos e taxas em Portugal. Pode-se argumentar que foi uma decisão da UE no fatídico 27 de fevereiro em que Ursula vor der Leyen anunciou as sanções. Contudo, essa desculpa cai por terra ao se constatar que em países da UE, como Espanha e Polônia, nossos colegas receberam seus salários. Em outros, como Holanda, Bélgica, ainda é possível acessar o site da Sputnik.

Ademais, a censura a conteúdos jornalísticos desrespeita o artigo 38 da própria Constituição da República Portuguesa, além de ferir os valores do 25 de Abril, como a liberdade de expressão. Sob a desculpa de que a Sputnik seria uma “máquina de mentiras”, von der Leyen anunciou uma medida típica das ditaduras que a UE, que se gaba por ser exemplo de democracia, diz tanto combater.

Afinal, este atentado à liberdade de imprensa é um tiro no pé da democracia europeia. Se há fake news em algum lado, que os fact-checkers as desmintam e que as plataformas as eliminem. Facebook, Instagram, YouTube e Twitter têm políticas rigorosas sobre isso e mecanismos de excluir conteúdos falsos específicos. Já trabalhei com isso.

O que não se pode é fazer uma generalização parva e preguiçosa de tirar do ar todo conteúdo produzido por jornalistas sérios e qualificados, revisados por profissionais de Letras, preocupados com o rigor da língua portuguesa, que há muito se perdeu na imprensa brasileira.

Portanto, convido a senhora von der Leyen a ler minhas reportagens e a desafio a encontrar qualquer informação falsa ou ainda que duvidosa. Se lograr êxito, rasgo o meu diploma. Santos Silva também terá oportunidade de me responder, agora como presidente da Assembleia da República, já que, ainda como ministro dos Negócios Estrangeiros, foi procurado por mais de uma semana por meio do seu (ex-)chefe de gabinete, que ignorou mais de cinco emails.

Num país que censura jornalistas e que passou quase quatro meses com o Parlamento fechado, vale a máxima enviada a mim pelo Doutor em História Francisco Carlos Teixeira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro: “democracia só para alguns”.

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