Malhas que o racismo tece

A escultura do Padre António Vieira ainda transmite a ideia de um povo indígena atrasado e infantilizado. Nesse sentido não só é paternalista como perpetua mesmo concepções racistas.

Se há meses se dissesse que uma escultura iria ser um ponto de discórdia com as actuais proporções, ninguém acreditaria. Habituámo-nos a conviver nas nossas cidades com estátuas, ruas e praças em homenagem a pessoas e eventos que, apesar de os desconhecermos, não chegam a tirar-nos o sono. Essas representações ou homenagens estão no mesmo sítio há muito, mas não é por isso que honramos mais os representados.

Pouco depois de inaugurada no Largo Trindade Coelho, a escultura dedicada a António Vieira gerou logo controvérsia. O que esteve em causa não foi o facto de prestar homenagem a uma personalidade fulgurante e multifacetada da nossa cultura, um mestre da escrita e da oratória. O que esteve e continua a estar em causa é o modo como se escolheu representá-la.

Numa pose desafiadora, a estátua de António Vieira segura uma cruz, parecendo defender três crianças. Pelas feições, fazem lembrar o povo indígena tupi, que já vivia na América do Sul muitos séculos antes de os portugueses se resolverem a colonizá-la. É conhecido o papel que Vieira teve na defesa dos indígenas contra a violência dos colonos. É, assim, representado como um grande pai protector — termo que os próprios indígenas lhe atribuíram na sua língua: “Paiaçu”.

Mas o verdadeiro problema está no modo como os indígenas são representados. Porquê crianças e não adultos? Os tupi tinham uma esperança média de vida que ia além dos 12 anos. Por que razão todos os tupi representados — não um, não dois, mas três! — o são sob a forma de crianças?

Um século e meio depois de Vieira ter morrido, a publicação da teoria da evolução do naturalista Charles Darwin teve um impacto cultural que foi muito além das suas implicações científicas. Sugeria que os organismos mais bem adaptados ao seu meio eram os que tinham maiores hipóteses de sobreviver, levando os outros progressivamente à extinção. Era a “sobrevivência do mais apto” (survival of the fittest), na expressão da época.

Não demorou muito até que esta lógica fosse aplicada a outros domínios, como a antropologia. Ideias sobre a superioridade dos europeus em relação a povos colonizados já existiam, mas ganharam outra legitimidade com estes argumentos científicos. A espécie humana foi dividida em raças com características próprias, e estas hierarquizadas em graus crescentes de civilização. No topo, os europeus: brancos, vivendo em sociedades tecnologicamente avançadas, mais evoluídos. Em baixo: os não-europeus, não-brancos, vistos como atrasados, formas primitivas de humanidade, com características psicológicas e físicas que os aproximavam de macacos.

Portugal estava longe de ser a Inglaterra em que Darwin nasceu e viveu, mas não passou à margem destas ideias. Um bom exemplo é Oliveira Martins, companheiro de Eça de Queirós e Antero de Quental, um intelectual interventivo que chegou a ministro. Tal como eles, Martins foi influenciado pela teoria da evolução de Darwin. É por isso que, na sua obra O Brasil e as Colónias Portuguesas (1880), afirma que “às tribos tupis, acontecia, por mão dos portugueses, o que aos aimorés ou crens sucedera antes: eram expulsas ou exterminadas na luta com o invasor mais forte. [...] Sarjado todo o Brasil por caminhos, terrestres ou fluviais, mosqueado de vilas perdidas pelas serras, a sorte infalível, embora distante ainda, dos selvagens é o extermínio, o acabamento. Assim aconteceu sempre que frente a frente se encontraram sobre a terra duas raças animais, humanas ou não humanas, mais e menos bem armadas para a disputa do solo”. Para Martins, era a consequência natural do atraso indígena, manifestado numa “capacidade craniana proximamente igual entre os homens pre-históricos [da Europa] e os actuais indígenas [da América]” (pp. 143–145).

O atraso evolutivo dos indígenas era frequentemente equiparado a um estádio infantil de desenvolvimento. Para Martins, tal era evidente no africano: “Sempre o preto produziu em todos esta impressão: é uma criança adulta. A precocidade, a mobilidade, a agudeza próprias das crianças não lhe faltam; mas essas qualidades infantis não se transformam em faculdades intelectuais superiores.” O negro era considerado “um tipo antropologicamente inferior, não raro próximo do antropóide, e bem pouco digno do nome do homem” (p. 257).

Esta retórica foi importante em países que, como Portugal, eram colonialistas. Dava uma justificação clara para que uns dominassem sobre outros. Isto não significa que a ciência do século XIX fosse má ciência. O que mostra é que até a ciência da altura foi influenciada pelas ideias racistas da época. Mais tarde, foi a própria ciência a mostrar-nos que não faz qualquer sentido falar em raças humanas distintas, muito menos em hierarquias.

Mas a escultura de António Vieira ainda transmite a ideia de um povo indígena atrasado e infantilizado. Nesse sentido não é só paternalista, perpetua mesmo concepções racistas. É possível que o autor da obra não estivesse consciente deste facto histórico, mas isso não lhe retira responsabilidade. A estátua foi concebida no século XXI, e não no século XIX. À luz do conhecimento actual, ela é altamente problemática, até porque foi instalada num local não só público como central de Lisboa.

Vieira foi escritor, orador, diplomata, homem de intervenção política. Poderia ter sido representado de várias maneiras. Porquê, então, “aquela” representação? É até irónico que Vieira figure como símbolo evangelizador da sua Igreja Católica, quando ela própria o acusou, julgou e condenou, através da Inquisição.

O que me surpreende na actual controvérsia não é que a escultura tenha sido grafitada. Coisas muito mais drásticas têm acontecido por todo o mundo. No Reino Unido, a estátua do comerciante de escravos Edward Colston foi arrancada do pedestal e atirada às águas do porto de Bristol! O que me surpreende é que uma ocasião em que milhares de pessoas, em todo o mundo, protestam contra o racismo, juntando-se ao movimento “Black Lives Matter”, não seja aproveitada para um debate amplo sobre a herança colonialista portuguesa. O que inclui, é claro, as suas representações racistas.

Se a estátua de António Vieira não é problemática, por que razão foi ela cercada por neonazis em 2017, quando um grupo de activistas anti-racismo tentava fazer uma manifestação de protesto pacífica? Como o exemplo americano mostra, é quando as manifestações pacíficas não resultam que se parte para o vandalismo. Qual a posição da Câmara Municipal de Lisboa ou da Santa Casa da Misericórdia, que patrocinaram a obra? E que dizer da Companhia de Jesus, ou até da Igreja Católica? Estão confortáveis com a associação da escultura a ideologias e grupos racistas?

Reduzir uma discussão séria e importante sobre o passado e o presente do racismo a uma questão de “vandalização do património”, como tem sido feito por tantos comentadores, é grave. Passar ao lado de um movimento anti-racista global de proporções históricas é ignorar a questão fundamental do nosso tempo e, aqui sim, cair num anacronismo.

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