Querida mãe, querido pai. Então que tal? Ouvi dizer que em Medicina se passa mal.

Este hipotético número adicional de vagas em Medicina traz alento para quem deseja entrar neste curso. Mas traz também um enorme desalento para quem nele está ou quem o frequentou.

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rui gaudencio

Querida mãe, querido pai. Então que tal?
Nós andamos do jeito que Deus quer
Ouvi dizer que em Medicina se passa mal.
Lá está, mais um Ministro sem saber o que fazer

Os versos de Postal dos Correios, cantados pelos icónicos Rui Veloso, Tim, Jorge Palma, João Gil e Vitorino, retratam a história de um jovem que veio da aldeia para a cidade, à procura de melhor sorte. Estes versos, agora adaptados, dirigem-se a todos os jovens que irão acabar o ensino secundário e vêem o número de vagas de Medicina aumentar, procurando melhor sorte num curso onde mais vagas significa, obviamente, mais chances de entrar.

Este raciocínio é repetido, com carinho, pelos pais que vêem os seus filhos lutar tanto para entrar num curso em que, na realidade, mais difícil do que entrar, é acreditar que quando saírem da faculdade o país irá lutar tanto quanto eles para os ver ficar.

Este hipotético número adicional de vagas em Medicina traz alento para quem deseja entrar neste curso. Mas traz também um enorme desalento para quem nele está ou quem o frequentou, pois a realidade que vêem agora os que frequentam o curso de Medicina é muito diferente daquela que viam do lado de fora, enquanto candidatos ao mesmo.

Enquanto candidatos víamos um “futuro garantido”, uma profissão bem remunerada. Já estudantes vemos um futuro incerto onde, ao fim de seis anos de ensino superior, o mais provável é não se ter acesso à formação especializada numa profissão onde as 60, 70, 80 ou 90 horas semanais e os 1100 a 1500 euros não pagam o cansaço, o burnout, a distância da família ou a falta de condições.

Enquanto candidatos víamos a possibilidade uma vida estável, com família e sucesso profissional. Como estudantes vemos uma vida de retalhos, seja no concurso para os quatro a seis anos seguintes de formação especializada numa vaga algures por Portugal fora, seja no final da especialidade no concurso para especialistas que, a abrir a tempo, com o desinvestimento que tem havido, mais provável é conseguir uma vaga indesejada num local novamente afastado da vida familiar, do/a companheiro/a e amigos. E não fosse essa instabilidade suficiente, o reconhecimento profissional por parte do Governo faz-se, hoje em dia, com prémios de finais internacionais de futebol e afins.

É verdade, também existem outras profissões, algumas com bastante saída e nisso a canção não podia estar mais certa quanto à digitalização e à área tecnológica. Apesar de tudo, não vos quero desmotivar a lutarem pelos vossos sonhos, tal como eu também lutei sabendo o risco que corria e sabendo que era este o destino que queria traçar para mim. Sei que a vontade de ser bem-sucedido nos exames nacionais aumenta bem mais do que o aumento de 15% de vagas nas escolas médicas, dando a ilusão de que todas as desvantagens que mencionei acima não se sobrepõem ao sonho de cuidar.

O caminho não é fácil. O final do curso, a especialização, essencial para se sentirem capazes de cuidar bem dos vossos futuros doentes, é difícil de obter e mais de um terço dos recém-diplomados não têm vaga, obrigando-os a emigrar ou a trabalhar “a recibos verdes” nos hospitais, factor que advém do desinvestimento na saúde e que contribui para a desorganização do Serviço Nacional de Saúde. Contudo, como futuro médico, sei que os vossos (potenciais) futuros colegas vos receberão de braços bem abertos, orgulhosos por se fazerem acompanhar por vocês e lutarão pelo vosso futuro com garras e dentes.

O mal já está feito e só não o emenda agora quem não quer. Até lá, despeço-me, ajustando a música de acordo com a triste realidade e desejando-te boa sorte para os exames, caro futuro colega.

Já não tenho mais assunto p'ra escrever
Cumprimentos ao nosso pessoal
Um abraço deste que tanto vos quer
Somos capazes de vir a trabalhar no hospital.

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