Quem encarna o SNS

Sem alternativas e com uma oferta internacional aliciante, a emigração revela-se uma saída óbvia para muitos médicos recém-formados.

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LUSA/FABIO FRUSTACI

À data que escrevo este texto, o concelho de Lisboa contabilizou 2536 testes SARS-CoV-2 positivos. No caso de um dos principais hospitais, isto determina um fluxo para o serviço de urgência que resulta em centenas de testes diários. Durante os dias da semana, na linha da frente cuida uma equipa de médicos relativamente fixa, metade dos quais, indiferenciados, vulgo tarefeiros.

O Sistema Nacional de Saúde (SNS) não reconhece o lugar destes profissionais, não abrindo espaço nos seus quadros, mas dada a carência de clínicos, hospitais por todo o país vêem-se obrigados a contratá-los a recibos verdes, diariamente, muitas vezes pelo intermédio do negócio de empresas dedicadas. Este cenário dificulta a existência de equipas fixas, coesas, resultando num desinvestimento na formação e contribuindo para um empobrecimento do SNS. Somando os custos desta prestação de serviços, o relatório social do ministério da saúde relativo a 2018 imprime que se ultrapassaram os 100 milhōes de euros, uma subida de 7,8% relativamente ao ano anterior, e um aumento que se tem verificado sistematicamente.

A Ordem dos Médicos prevê que após a formação geral os internos tenham autonomia, podendo trabalhar de forma independente. Contudo, de forma a aceder à carreira médica, a maioria orienta-se para ramos distintos. Em 2019, foram cerca de 2400 os que concorreram à formação específica, ficando mais de 500 sem lugar. A escassez de vagas é um dos principais motivos para o acumular de mais de 2000 sem especialidade, segundo os dados da Associação de Médicos pela Formação Especializada. É trágico, em particular, nesta altura em que surge a possibilidade de dilatarem as vagas dos cursos de Medicina. Se mantivermos este balanço, dentro em breve, o mercado irá transbordar de médicos indiferenciados.

Pela sombra do estigma, este espectro de médicos cruza-se com a maioria das pessoas que procura ajuda nesta urgência, em Lisboa, por apresentar sintomatologia respiratória. Prestam cuidados de saúde de risco sob o estatuto de trabalhador independente, mesmo sendo fundamentais para a manutenção da equipa. Isto implica que, quando algum destes se infecta com o novo coronavírus, tenha de cessar a sua actividade por um mínimo de 15 dias, sem remuneração, à semelhança do que, lamentavelmente, é o dia-a-dia de outros profissionais de saúde. Ou seja, na luta pela saúde, vemos uma rede desprotegida, sem direito a férias ou folgas, e sem isolamento profiláctico.

Em perspectiva, a intensa experiência clínica destes médicos indiferenciados é sobreponível à de outros colegas que cumprem a formação específica. No entanto, plantam raízes no caos hospitalar, onde imperam os contratos precários da prestação de serviços, estagnando as suas carreiras por falta de opção. Este é um problema que se tem vindo a arrastar por entre propostas de abertura de concursos extraordinários para o ingresso na formação especializada e alteração dos planos formativos, sem respostas da parte do Governo.

Sem alternativas e com uma oferta internacional aliciante, a emigração revela-se uma saída óbvia para muitos recém-formados. É urgente inverter esta tendência e aprovar soluções que visem a especialização, é urgente investir na saúde. Se hoje estes médicos resolvessem procurar melhores condiçōes de trabalho, os serviços de urgência despertariam secos. No barco da precariedade encontramos desde médicos especialistas a indiferenciados, enfermeiros, técnicos e auxiliares. Paira a questão: mas afinal, quem encarna o SNS?

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