Já são dois mil sem especialidade. Mas estes médicos fazem tudo

A “bengalinha” de Ana são os livros, amigos e familiares médicos. A de Mariana são os colegas. Ambas as médicas foram “atiradas para a selva” sem formação especializada. Nas regiões mais carenciadas, muitos destes médicos indiferenciados fazem as vezes do médico de família.

Foto
Rui Gaudêncio

Sozinha numa extensão de saúde, Ana, médica de 27 anos, tira as dúvidas que lhe surgem ao telemóvel com amigos ou familiares médicos. Não há nenhum outro clínico no edifício onde faz consultas uma vez por semana e não é costume encontrar-se com a enfermeira que lá vai dois dias. Sendo “normal que todos os médicos tenham dúvidas”, com ela são mais frequentes, pois Ana não tem formação especializada para as funções que exerce.

A trabalhar como médica indiferenciada no Serviço Nacional de Saúde (SNS) desde o início do ano, contratada por três empresas de prestação de serviços, Ana divide as 40 ou até 52 horas de trabalho entre uma extensão de saúde, um serviço de atendimento permanente e um hospital na sub-região do Oeste. Nas primeiras, dá consultas a utentes sem médico de família, prática comum em zonas carenciadas. E faz entre 12 a 15 horas de banco de urgência.

“Estudo muito em casa e quando o desespero aperta ligo a colegas. Tenho a sorte de ter médicos na família. É uma bengalinha que arranjamos, porque não temos formação suficiente para estas funções”, diz.

Ana fez o ano comum (que se segue a uma formação académica de seis anos). É este ano comum, de trabalho no terreno, em que contactam com diferentes especialidades, que dá aos médicos autonomia para exercer a profissão. Para fazerem uma especialidade precisam, contudo, de mais quatro a seis anos de formação.

Mas depois de duas tentativas, Ana não conseguiu nota suficiente na prova nacional de acesso para entrar numa especialidade médica. Este ano deve tentar novamente.

Foi por causa do crescente desfasamento entre o número de médicos que procuram a formação especializada (2703 inscreveram-se no exame de acesso do ano passado) e a capacidade formativa de hospitais e dos centros de saúde (havia 1666 vagas para formação) que o número de médicos indiferenciados disparou nos últimos três anos.

Em 2015, a primeira vez nas últimas duas décadas em que o número de vagas foi menor do que o de candidatos, já havia 725 médicos sem especialidade em Portugal. Hoje serão mais de 2100, 600 dos quais desde o ano passado, segundo as estimativas calculadas pela Associação de Médicos pela Formação Especializada, criada em 2016.

Se as condições actuais se mantiverem, a previsão desta associação aponta para a existência de 4400 médicos indiferenciados em 2021. Este valor é calculado tendo em conta os cerca de 1500 estudantes que todos os anos entram em Medicina, a afluência daqueles que, como Ana, tendo estudado fora tentam fazer a especialidade em Portugal (foram 460 no ano passado) e dos que, ficando retirados em anos anteriores, repetem o exame de acesso.

O que podem fazer?

Sem especialidade, quem quer exercer medicina tem três opções: emigrar, repetir o exame ou trabalhar como indiferenciado, sem acesso à carreira médica (não progridem). Os que seguem esta via são maioritariamente contratados para prestação de serviços. Normalmente trabalham em mais do que uma unidade de saúde, sem contrato nem horários fixos. Grande parte faz urgências.

Há muitos a dar consultas em centros de saúde, alguns a fazer cirurgias. Outros a exercer em gabinete de medicina no trabalho, “o que é ilegal”, diz Estevão dos Santos, da Associação de Médicos pela Formação Especializada.

O bastonário da Ordem dos Médicos também já afirmou publicamente que a legislação proíbe o exercício da especialidade de medicina geral e familiar no SNS a médicos indiferenciados.

O problema é que não há uma lista do que podem ou não fazer os médicos indiferenciados. Não existindo nenhuma lei que balize os actos que podem ser praticados pelos médicos consoante a sua especialidade ou competência, prevalece o entendimento que se tem do código deontológico. Ora este não proíbe os médicos de praticarem actos de outras especialidades. Diz apenas que o clínico “não pode ultrapassar os limites das suas qualificações e competências” e acrescenta que “as especialidades, subespecialidades, competências e formações reconhecidas pela Ordem devem ser tidas em conta”.

Continua a colocar-se a questão: o curso de medicina prepara um médico para exercer o quê? Em teoria, um médico sem especialidade não pode dizer que é ginecologista, cirurgião ou clínico-geral mas pode fazer um parto, uma cirurgia ou uma consulta de cuidados primários. “Na prática, um médico exerce segundo a sua consciência e, em caso de queixa, a Ordem avalia, caso a caso, se esse acto se consubstanciou em violação do código deontológico”, explica Estevão dos Santos. Excepção para as especialidades de saúde pública, perícia médico-legal e medicina do trabalho cujo desempenho de funções depende do reconhecimento da especialidade ou idoneidade técnica.

Situação arriscada

Por isso que é o representante da Associação de Médicos pela Formação Especializada diz que a questão que se coloca não é de legalidade, mas a moralidade da situação, pois “não é expectável que um SNS de qualidade coloque médicos sem especialidade a fazer cirurgias, por exemplo”. Esta situação, corrobora Afonso Moreira, do movimento “Médicos Indiferenciados, Não” (MiN), “é perigosa e arriscada” para médicos e utentes.

Ana exerce aquelas que seriam as funções de um médico especialista em medicina geral e familiar, à excepção das consultas maternas, de pediatria e de planeamento familiar. “Atendo os adultos, o que supostamente seria mais fácil, mas não é.”

Numa zona do país em que a incapacidade de resposta do sector público convive com o aumento das unidades privadas, os casos mais comuns são de utentes com doenças crónicas que esperam há vários meses por consulta. “Os primeiros cinco minutos de atendimento são sempre iguais: ‘Tenho diabetes ou hipertensão, mas não sou seguido por nenhum médico. Não tenho tratamento. Não faço análises há sete ou oito meses’”, retrata. Alguns destes utentes deviam ser vistos a cada três ou seis meses.

Ana, que já apanhou “alguns sustos”, acaba as consultas quase sempre encaminhando os utentes para consultas de especialidade. Procede de acordo com o código da sua profissão: “Sempre que entenda necessário, o médico deve pedir a colaboração de outro médico ou indicar ao doente um colega que julgue mais qualificado.”

À insegurança, junta-se a precariedade. Ana trabalha a recibos verdes, concorre todos os meses para garantir vaga, recebe cerca de 900 euros — salário que varia consoante as horas que consegue fazer. E ainda que na sub-região do Oeste a oferta na prestação de serviços seja abundante, é desproporcional à procura. “Ou somos os primeiros a responder ou ficamos sem vagas para o mês que vem”, explica a médica. A três dias do início de Julho, ainda não sabia ao certo qual seria o seu horário este mês.

Os médicos sem especialidade constituem um terço dos clínicos contratados por prestação de serviços. No passado, trabalharam mais de 1,3 milhões de horas, o que significou um encargo de 32,1 milhões de euros para o Ministério da Saúde, de acordo com o relatório social do SNS.

“Não temos grandes alternativas. Estamos sujeitos às ofertas das empresas”, diz Ana. A médica fá-lo para não ter que trabalhar noutra área e “perder a mão” à medicina.
Já Mariana tinha nota para duas vagas em patologia clínica da segunda vez que fez o exame de acesso à especialidade. Como nunca se imaginara a trabalhar num laboratório, optou por “enfrentar a vida de tarefeira” num serviço de urgência. Foi com esse objectivo que fez os últimos seis meses do ano comum, dedicando-se à cirurgia geral e medicina interna.

“Atirada para a selva”

Uma vez com autonomia, ficou nesse mesmo hospital no distrito de Aveiro a fazer urgências e, desde o início do ano, preenche as horas vagas em consultas ao domicílio e num serviço de atendimento permanente. Uma experiência de três meses a fazer urgência no Algarve colocou-a numa situação semelhante à de Ana: “Fui completamente atirada para a selva. Passei de um ano comum onde ganhei autonomia para uma situação em que tinha a responsabilidade toda”, explica a médica de 26 anos.

No hospital onde se formou é diferente, tem uma rede, graças ao apoio dos médicos com quem já tem confiança. “Eu corro todo o dia a perguntar coisas. Se não tivesse estas pessoas a quem me dirigir, estaria completamente perdida.”

“Costumo fazer a piada de que se aparecer um caso mais complicado, vou chamar um médico”, conta.

Depois de voltar atrás na intenção de emigrar, Mariana quer repetir exame no próximo ano, quando já tiver um ano e meio de experiência. Mas se se mantiver nestas funções, conta ganhar confiança com o tempo, como aconteceu com os colegas que são tarefeiros há 10 anos. No hospital onde trabalha haverá entre 30 a 40 médicos indiferenciados de diferentes idades incumbidos de atender os utentes com pulseira verde e amarela (pouco urgente e urgente). Quando é necessário chamam os especialistas que não estão em presença permanente na urgência.

E a flexibilidade do horário não lhe desagrada. Mariana faz quatro a cinco turnos semanais, depois de ter abrandado o ritmo que levava quando trabalhava no Algarve, a fazer “seis a sete turnos de 12 horas”. Aliás, a médica não sabe se aceitaria um contrato de trabalho, que a sujeitaria a 40 horas semanais com um ordenado inferior, e uma carga de trabalho mais exigente.

“Acho muito mal que o sistema funcione assim, mas não podemos recusar. É uma alternativa para quem não tem especialidade amealhar uns trocos”, afirma. O que pode não ser assim por muito tempo, pois com o aumento dos colegas na mesma situação, prevê que a oferta salarial diminua.

Estigma e frustração

O receio de repercussões nos locais onde trabalham é o motivo que explica que estas duas médicas tenham pedido o anonimato.

Depois há o estigma e a frustração. “Criou-se uma ideia errada de que são os médicos que não têm capacidade para ser especialistas. É-lhes incutido um sentimento de falhanço e de culpa por não terem conseguido entrar, quando na verdade a culpa é do sistema que é insustentável”, sublinha Afonso Moreira.

Critica a falta de vagas e a forma como estas são atribuídas, com base “num exame que não avalia de facto se a pessoa é ou vai ser bom médico”. Quer o exame conhecido com Harrison, quer a prova que o vai substituir já no próximo ano, não incidem “sobre muitos aspectos sobre o que é ser um médico completo: competências éticas, emocionais, mesmo algumas técnico-científicas não são abordadas”, entende o médico interno de Saúde Pública.

PÚBLICO -
Aumentar

Como é que isto se resolve? Por um lado, o Governo é pressionado para aumentar as vagas da especialidade e, pela Ordem dos Médicos e pelos estudantes de medicina, para reduzir o numerus clausus nas faculdades. Por outro, a Ordem — responsável pela proposta do número de vagas — diz que os hospitais estão no limite da sua capacidade formativa. E tem criticado o Ministério da Saúde por “insistir em contratar horas de médicos indiferenciados em vez de contratar médicos integrados numa carreira”.

A concorrência feroz para entrada na especialidade cria também “um efeito perverso” nos estudantes, diz Estevão dos Santos, que vê muitos jovens a descartarem a oportunidade de fazer os estágios do último ano do curso em unidades de saúde de maior exigência, para optarem por aquelas que lhes vão permitir sair mais cedo para estudarem para o exame.

A associação e o MiN exigem medidas urgentes para incluir na formação especializada quem tem esse objectivo. A médio prazo, pedem investimento na contratação de médicos especialistas de modo a não só garantir a qualidade dos cuidados, como a aumentar a capacidade formativa. E reclamam transparência por parte da Ordem dos Médicos sobre o processo de atribuição e rejeição de vagas aos hospitais que as pedem.

Propostas mais concretas estão a ser discutidas internamente, com sindicatos e grupos parlamentares.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários