Milhares de trabalhadores do turismo e restauração em situação “aflitiva” e “inaceitável”

Num sector com “fabulosos lucros acumulados”, serão milhares os trabalhadores com salários em atraso e despedidos ilegalmente. Sindicato de Hotelaria do Norte denuncia diversas violações e pede intervenção do Governo e ACT.

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Diogo Baptista/ Arquivo

Férias forçadas, rescisão de contratos a termo ou experimentais, bancos de horas negativos, transferências forçadas de local de trabalho, layoff injustificados, rescisão com empresas de trabalho temporário e prestadoras de serviço, provocando o despedimento de centenas de pessoas. Em tempos de pandemia, as queixas de “violação de direitos dos trabalhadores” do sector do turismo e restauração – hotéis, alojamentos locais, restaurantes e cafés – não param de chegar ao Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Norte, que pinta um cenário “inaceitável”. Os números são incertos, mas atingem milhares de trabalhadores em todo o país, estima o sindicato, pedindo intervenção do Governo e da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).

Apenas “15 dias” após o surto de coronavírus se instalar no país, as empresas acenderam a luz vermelha e começaram a “despedir trabalhadores em massa”. Os patrões “usaram todas as artimanhas para despacharem os trabalhadores e rescindiram contratos com empresas prestadoras de serviços levando ao despedimento de muitas centenas de pessoas”, denuncia Francisco Figueiredo, responsável pela contratação colectiva na Federação dos Sindicatos da Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal (FESAHT). “Este sector tem há oito anos consecutivos uma situação excelente. Não há nenhuma razão para os patrões não terem dinheiro. Aquilo que verificamos é que houve uma descapitalização. As empresas têm direito a retirar dividendos no final do ano, mas não podem descapitalizar-se. Durante estes oito anos, as empresas, que até congelaram salários, não guardaram dinheiro para acudir a uma situação destas”, lamenta.

Preocupados com “um dos sectores mais afectados a nível nacional” pela crise do novo coronavírus, o sindicato teve já duas reuniões com a secretária de Estado do Turismo, Rita Marques, e pediu uma reunião com a ministra do Trabalho e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho. Da primeira queixam-se não ter tido respostas específicas, da segunda da ausência de resposta.

Francisco Figueiredo, da FESAHT, diz ser urgente a criação de um “fundo especial” para apoiar directamente trabalhadores de restaurantes, cafés, pastelarias e alojamentos locais que não possam recorrer nem a layoff (por terem dívidas ou não terem contabilidade, por exemplo) nem a outras medidas especiais criadas pelo Governo. A maioria das empresas de restauração e bebidas têm “em média, três a quatro trabalhadores” e é nelas que trabalha “94% do sector” da restauração e AL, diz Francisco Figueiredo para quantificar a dimensão do problema. “Há 72 mil pequeníssimas empresas que empregam mais de 200 mil trabalhadores e não recorreram nem vão recorrer a layoff nem a nenhum apoio especial do Estado.” Esses trabalhadores “ficaram sem qualquer protecção social”, numa situação “aflitiva” e têm um “futuro incerto” pela frente.

A esta proposta, continua o dirigente sindical, o Governo “não respondeu”. Tal como aconteceu com outras duas apresentadas. A primeira recomendava a “flexibilização da suspensão do contrato”, anulando “burocracia” que torna estes processos demasiado complexos: “Fazerem com os trabalhadores o que fizeram com os patrões ao flexibilizar o layoff”. A outra, era a criação de um “fundo de garantia salarial”, onde “o Estado adiantaria o salário e as empresas, quando reabrissem, reporiam o dinheiro.”

O problema diz respeito a diversas estruturas, pequenas ou grandes. Só no Porto, o Sindicato de Hotelaria tem conhecimento de “sete hotéis, com 120 trabalhadores, que ainda não pagaram o salário de Março”. E o quadro, estima o sindicato, será “igual em todo o país” - serão “milhares de trabalhadores” na mesma situação, apontou o sindicalista Nuno Coelho.

E a FESAHT faz questão de pôr nomes em cima da mesa, já divulgados também no seu site. Citando apenas alguns: a Casa Aleixo não pagou os salários de Março de 11 trabalhadores, tal como o restaurante Cufra (80 trabalhadores), a Confeitaria Ferreira (40), a confeitaria Concha de Ouro (15), a Cervejaria Sagres (15), a Taberna Inglesa (12). Na Champanharia da Baixa foram despedidas nove pessoas alegando extinção do posto de trabalho, a Dona Pichana fez o mesmo com 12 trabalhadores e a Fatias Apelativas com 11.

Aos patrões dos hotéis, com “fabulosos lucros acumulados”, a FESAHT propõe que “completem os salários”, instando o Governo a “obrigar as empresas, através da ACT, a reintegrar todos os trabalhadores, anulando férias forçadas e bancos de horas negativos sem qualquer sentido”. Os valores dos salários destes trabalhadores “são tão baixos que para os completar as empresas têm de disponibilizar apenas 100 ou 200 euros”, argumenta.

Sem segurança e sem fiscalização

Quem ainda cumpre serviços mínimos, não fica isento de problemas: “Não estão a ser garantidas condições mínimas de segurança e protecção”, denuncia a FESAHT. Exemplos? O sector das cantinas dos hospitais, aponta Francisco Figueiredo, dando o exemplo de uma dezena de trabalhadores infectados no Hospital de Santo António e pelo menos 16 na Casa de Saúde da Boavista. “Ninguém fala neles. Estão a trabalhar sem qualquer protecção”, lamenta.

Ainda esta sexta-feira, foi apresentada uma queixa em relação ao IPO do Porto: uma trabalhadora foi infectada e aconselhada a ir para casa pela linha SNS24, mas a encarregada queria que cumprisse o turno até ao fim. Segundo Francisco Figueiredo, são, muitas vezes, pessoas que levam comida a utentes infectados e andam sem protecção ou têm viseiras antes usadas por outros colegas e sem qualquer desinfecção prévia.

As empresas de trabalho temporário dispensaram centenas de trabalhadores, os casinos e bingos encerraram e deixaram os trabalhadores com rendimentos muito baixos (parte importante do salários destas pessoas vem das gorjetas), os oito mil funcionários das cantinas das escolas agora encerradas temem o que virá. 

A FESAHT lamenta que, neste cenário de crise, a ACT esteja parada: “A inspecção não está a ir às empresas nem a contactar os patrões”, afirmou Francisco Figueiredo, falando numa situação que já era problemática antes do surto de covid-19. “Neste momento de grande incerteza, a ACT está a despachar processos de 2014 e 2016”, denuncia, apresentando documentos que o provam. Em 2019, ilustrou, o sindicato fez 180 denúncias e só 40 tiveram resposta, com apenas três autos levantados. “A ACT não actua no sector”, acusa.

O PÚBLICO questionou o Ministério do Trabalho sobre o assunto, mas não obteve qualquer resposta. Também a ACT não reagiu em tempo útil.

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