O medo e a tecnologia de mãos dadas no controlo da pandemia

Drones a patrulhar praias, polícia a controlar entradas e saídas das cidades ou aplicações móveis que monitorizam o movimento dos cidadãos. Imagens distópicas, dignas de um filme futurista, mas que fazem parte do quotidiano dos países que atravessam a covid-19 e do qual Portugal faz parte. Tecnologia e medo caminham de mão dada no combate a um inimigo invisível.

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Paulo Pimenta

Foi dos países asiáticos que chegaram os primeiros exemplos da forma como as autoridades nacionais reforçaram as medidas de segurança para evitar que os cidadãos furassem as regras de quarentena. 

Na Coreia do Sul, por exemplo, além das câmaras de vigilância, as autoridades acederam aos dados dos cartões de crédito, e à consequente movimentação dos utilizadores, para identificar possíveis cadeias de transmissão do vírus. Em Singapura, segundo descreve o jornal The New York Times, o ministro da Saúde tornou pública a informação privada de cada contaminado com coronavírus, revelando dados tão detalhados como o da identidade das pessoas com que esse doente privou

Na China, onde tudo começou, os 200 milhões de câmaras que estão espalhadas pelo território, várias com software de reconhecimento facial associado ao registo criminal dos cidadãos — uma espécie de de crédito social estilo Black Mirror — desempenharam um papel fulcral no controlo dos movimentos. O Governo chinês foi ainda mais longe e atribuiu um código QR aos cidadãos, classificando-os como “verde”, “amarelo” ou “vermelho”, de acordo com o risco que comportavam. O código é gerado através da aplicação Alipay Health Code, que foi desenvolvida pela equipa responsável pela Alipay, uma app da família da gigante tecnológica Alibaba.

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Cidadão na China mostra o código de CR a verde Aliplay

“Algumas das mais impressionantes inovações das empresas de tecnologia chinesas, durante a crise da covid-19, foram de rastreamento. Capacetes de inteligência artificial para medir a temperatura, drones capazes de usar reconhecimento facial para alertar quem não usava máscaras em público e aplicações móveis para controlar as viagens”, descreve ao P2 Wenhong Chen, especialista em novas tecnologias da Universidade do Texas, em Austin, que destaca o papel da Alibaba ou Tencent no processo.

“O mesmo tipo de ferramentas que são utilizadas em Estados democráticos para monitorizar o crime organizado e o terrorismo são, na China, usadas para controlar os cidadãos”, aponta Sandra Carvalho, analista de defesa e contra-terrorismo na empresa de consultoria Thales. “As medidas que temos visto na China eram comuns, até agora, a nível central. A novidade surge quando, pela primeira vez, as polícias locais começam também elas a criar os seus próprios sistemas de vigilância e a tomar a iniciativa. Foi um desenvolvimento surpreendente”, revela.

Drones e fronteiras vigiadas, imagens de um Portugal pouco visto

E com o alastrar da pandemia, que já matou mais de 100 mil pessoas e dobrou a fronteira psicológica do milhão de contaminados, países de outras latitudes impuseram quarentenas e recolheres obrigatórios, proibições de reuniões em público e até limites de passageiros em veículos. “Qualquer tipo de Estado carece, para cumprir essa sua primordial função, de exercer algum controlo dos seus cidadãos”, explica ao P2 Nelson Saramago Escórcio, jurista e especialista em privacidade e cibersegurança.

Em Portugal, o cenário não difere do que aconteceu primeiro em Itália, depois em Espanha e que se alastrou deixando grande parte da Europa mergulhada em espaços vazios. Quem, no Porto, arriscou passear na zona marginal foi surpreendido por drones.“Não permaneça no espaço público, senão por necessidade absoluta. Permaneça em casa”, gritavam as máquinas voadoras, nunca antes vistas por muitos veraneantes precoces. Mais a sul, quem arriscou atravessar a Ponte 25 de Abril viu uma possível estadia no Algarve gorada, com os limites impostos pelas autoridades. As filas adensam-se e apenas quem tinha justificação — ou laboral ou por regressar a casa — conseguiu passar a barreira imposta pela PSP.

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Drone na marginal do Porto PAULO PIMENTA

“Um helicóptero da protecção civil ou da guarda costeira suscita conforto, um drone, pela sua natureza não identificado nem tripulado, anseio”, aponta o especialista, que remete para “as autoridades públicas desmistificar o seu uso” [dos drones] e, nos “muitos casos em que tal é viável, conferir-lhes melhor identificabilidade e propósito”. “Durante o Euro 2004 foi usada videovigilância em espaços públicos, precisamente por se considerar ser um momento de excepção; na Cimeira da NATO em Lisboa há uns anos também se limitou a entrada de cidadãos, houve um patrulhamento pouco habitual na cidade”, recorda ao P2, Catarina Frois, professora auxiliar do departamento de Antropologia do ISCTE.

O medo que legitima mais medidas de contenção

E, ao mesmo tempo que os responsáveis estatais erguem barreiras pouco comuns, os próprios cidadãos também se procuram proteger e viram-se para o que têm literalmente à mão: os smartphones.

Na passada semana, em Portugal, foi lançada a aplicação Covid19–Estamos On. “O Governo lançou esta aplicação para reforçar a capacidade de alcance de toda a informação necessária para fazer frente ao novo coronavírus”, justificou o executivo em comunicado. Em Portugal, já serão mais de 50 mil os utilizadores da plataforma Covidografia, que usa dados enviados pelos próprios utilizadores — como o código postal — para avisar de casos suspeitos nas proximidades. A Google também começou a disponibilizar relatórios dos movimentos comunitários de 131 países. O objectivo passa por ajudar os governos a criar medidas de contenção. 

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Para os especialistas, os sentimentos de incerteza e de insegurança funcionam como um motor para o maior controlo. “Quanto maior for o sentimento de medo dos cidadãos — seja de um inimigo externo, interno ou de qualquer tipo de carência, estando no topo a saúde que, no limite, se liga à vida — maior é a facilidade de impor novas restrições”, aponta o jurista. “A barreira psicológica que existia foi derrubada. A partir de agora, serão os próprios cidadãos a exigir a utilização de meios mais sofisticados e de novas tecnologias”, concorda Sandra Carvalho. 

Medidas, que tal como recorda Cristina Frois, foram implementadas, por exemplo, no rescaldo do 11 de Setembro, “em que se cortaram direitos e liberdades”, em nome da guerra ao terror e de um inimigo particular e que ganham um novo destaque com o desenvolvimento tecnológico dos últimos anos. “A crise sanitária mundial que se vive actualmente convoca a utilização de uma série de medidas que parecem ter um maior grau de aceitação por políticos e pelo cidadão comum”, sublinha a especialista, que recorda os casos de violência nas próprias comunidades em Espanha e Itália.

“Não são apenas medidas governamentais ou políticas que actualmente promovem o controlo de movimentos, as próprias comunidades, os cidadãos individuais sentem esse apelo de monitorizar, vigiar, denunciar”, acrescenta. “De muitas maneiras, em muitos países, a privacidade já é uma batalha perdida. Os governos e as empresas já acumularam uma vasta quantidade de dados sobre os indivíduos. A questão, agora, é perceber se os dados privados não serão usados de forma perniciosa no futuro”, diz Wenhong Chen.

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