Empodere-se!: Uma “conversa informal” sobre autocuidado feminista

Maynara Fanucci, de 28 anos, “não conhecia nem o conceito de feminismo” quando, em 2014, encontrou um grupo no Facebook que mudou a sua vida. Hoje, com um livro baseado na sua página de sucesso Empodere duas mulheres, fala sobre autocuidado em tempos de machismo.

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A experiência de Maynara Fanucci reflecte a de muitas brasileiras na erupção da “Primavera das mulheres” Pedro Fazeres
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A brasileira Maynara Fanucci tinha uma página de sucesso no Facebook, Empodere duas mulheres, quando o ânimo começou a faltar. Decidiu então, em Agosto de 2017, desafiar-se e fazer uma publicação por dia, ao longo de 100 dias. “Nós, mulheres, somos tão estimuladas a começar desafios — uma nova dieta, uma nova rotina de academia... — , mas nunca paramos para pensar o que estamos fazendo com a nossa vida, trabalhando questões pessoais”, nota a jovem brasileira, de 28 anos, que está em Portugal para apresentar Empodere-se! 100 desafios para as mulheres reconhecerem a sua própria força (Oficina do Livro). “Uma conversa superinformal”, como lhe disse a avó — a primeira pessoa a quem deu a ler o livro —, notando que não era um livro para “ler de uma vez”, com momentos em que era preciso “fechar o livro e pensar, digerir um pouco”. 

Não fala sobre teorias feministas, mas, entre temas como “fortaleça a sua rede de mulheres, pare de vê-las como adversárias”, “respeite o seu próprio tempo” ou “não se diminua para caber no espaço do outro”, o toque de auto-ajuda dos 100 desafios de Empodere-se! mistura-se com uma mensagem feminista, propondo pequenos truques que levam a perceber melhor o potencial de cada uma e as armadilhas de uma sociedade ainda marcada pelo machismo. Um dos desafios fundamentais para Maynara Fanucci é o primeiro: “perdoe-se. Que, acredita, ressoará muito mais entre pessoas do sexo feminino: “muitas mulheres se culpam por abusos passados que sofreram, por não terem feito mais pelas suas vidas, pelas suas carreiras, pelos seus filhos, ou [sentem-se] culpadas por coisas que estão acontecendo agora na vida delas”, nota.

Para Maynara Fanucci, é preciso criar pontes mais claras entre as ideias do movimento feminista e a forma como se concretiza na vida das mulheres, “saber encaixar o conceito”. Às vezes, reconhece, a mensagem não comunica com mulheres mais pobres, “que não têm acesso a frases empoderadoras”, mas que, no seu quotidiano, lutam para conseguir trabalho, para permitir que os filhos estudem, ou para sair de “relacionamentos abusivos”. É por isso que tentou, na página como depois no livro, “trazer o feminismo em forma de desafios, de uma maneira simples e que se encaixasse no dia-a-dia”. Queria, acima de tudo, “trazer mulheres para o debate”, já que, acredita, criar identificação é o primeiro passo para se reconhecerem como parte do movimento. 

Muitas mulheres ainda dizem, por exemplo: “aqui em casa eu é que banco tudo, e não deixei de trabalhar; continuo cuidando da casa, continuo trabalhando, sou dona da minha vida, pago as minhas contas, mas eu não sou feminista de jeito nenhum”. Ouve também quem diz que não é feminista, mas considera que deve haver direitos iguais. “Curioso, não é? É como se você dissesse, eu não bebo água, mas bebo H2O”, brinca a designer. “É exactamente essa ponte que eu sinto que o movimento feminista tenta fazer.” 

Ainda há falta de conhecimento sobre o que significa o movimento feminista, “muitas pessoas que negam completamente tudo o que a gente fala, como se entrasse por um ouvido e saísse por outro”, comenta Fanucci. Os rótulos são imensos: não se querer depilar, não gostar de maquilhagem, não gostar de usar vestidos, ou mesmo dizer que todas as feministas são lésbicas (o que, além de “absurdo”, é “muito preconceituoso”, condena). E há ainda rótulos “que vêm em forma de ataque”, mas que referem precisamente o que o movimento quer. “Querem direitos iguais agora? Lugar de mulher é na cozinha!”, alguns dirão — ao que a única resposta, diz Maynara, é que, de facto, “a gente quer direitos iguais e está falando que lugar de mulher não é na cozinha, lugar de mulher é onde ela quiser”. 

Se hoje Maynara Fanucci lança um livro, participa numa TEDx Talk ou viaja para falar sobre a sua página, há pouco mais de cinco anos “não conhecia nem o conceito de feminismo”. Estudou em colégios católicos, filha única numa família “muito simples do interior” do estado de São Paulo. Descobriu o feminismo em 2014, através de grupos do Facebook, e conta que ler as discussões sob aquele ângulo foi uma espécie de “bombardeio”. “São coisas que acontecem com você, que acontecem com mulheres próximas, histórias que você escutou a sua vida inteira”, conta. “A partir do momento em que você lê isso na Internet, em que você vê experiências de outras mulheres, você se conecta com isso, começa a pensar que não é um problema localizado. É um problema que acontece continuamente.” 

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Primavera feminista

Para Fanucci, as redes sociais foram determinantes para colocar as ideias feministas na ordem do dia no Brasil. Também no passado, recorda, houve mulheres que falavam abertamente sobre a violência que tinham sofrido, que questionavam papéis de género, que falavam sobre “empoderamento”, ainda que com outras palavras. Mas não era, nota, “tão escancarado” — tão visível — como nos últimos anos. Recorda a revista Capricho, a sua favorita na adolescência, onde encontrava testes sobre moda e beleza, sem “nenhuma coluna que falasse coisas diferentes, que trouxesse essa consciência”. Uma publicação que, entretanto, “evoluiu” — a comunicação social em geral, aponta, passou a reconhecer mais a abordagem feminista, acompanhando os debates feitos nas redes sociais. “A Internet mostrou que esse debate era urgente. Canais de televisão abertos começaram a falar a respeito disso, não era uma coisa comum.”

A experiência de Maynara Fanucci reflecte a de muitas mulheres brasileiras na erupção da “Primavera das mulheres”, expressão que fazia capa da revista Época, em Novembro de 2015, depois das enormes manifestações contra um projecto de lei para banir o aborto, incluindo métodos contraceptivos como a pílula. Um fervilhar cujas sementes, para as feministas, tinham sido lançadas em 2011, com a Marcha das Galdérias (Slutwalk, nascido em Toronto, mas que depressa correu mundo). Em 2013, novos movimentos sociais ganharam força quando o Brasil saiu à rua em massa. O debate continuou e, no caso das mulheres, voltou a entrar em ebulição com a ajuda das redes sociais, depois de hashtags como #PrimeiroAssédio, promovida pela jornalista Jules de Faria e o grupo Think Olga, ou #AgoraÉQueSãoElas, campanha impulsionada por Manoela Miklos em que colunistas dos principais jornais e sites cederam os seus espaços de opinião a mulheres. E, claro, o grito #ForaCunha

“É difícil falar se uma coisa veio antes da outra; é um movimento que estava para acontecer de alguma forma”, recorda Fanucci. “Para mim, porque estava nesse momento de efervescência em que tinha recém-descoberto [o feminismo], foi um movimento em que a Internet colaborou em muito para a difusão desses conteúdos e dessas ideias”. Era algo que fazia falta ser debatido. “E, quando começou a ser falado, expandiu-se muito rápido.”

A jovem designer vive em Londres há três anos. Como olha para o Brasil, agora de fora? “A gente retrocedeu muito em termos de políticas sociais, de políticas ambientais, políticas trabalhistas. As pessoas estão tentando se juntar para entender o que está acontecendo porque é tudo muito rápido.” Se antes de Bolsonaro os problemas já eram gritantes, identifica agora “um movimento que realmente coloca em risco direitos básicos e humanos das pessoas no geral”. Mas, sobre a resistência aos avanços da igualdade de género, nota que a onda conservadora surge enquanto reacção à conquista de direitos e visibilidade. “A gente plantou, sim, muitas sementes nos últimos anos, consciencializou muitas pessoas, não só o movimento feminista, como outros movimentos de classe ou de questões raciais”.

Está atenta ao “esvaziamento político” do movimento feminista, um perigo natural numa altura em que se tornou “popular”. “Metade da população ainda sofre com violência, com discriminação e com uma série de coisas que precisam ser ditas, é importante também lembrar as pessoas de que acaba por ser um movimento político”. E ser político, sublinha, não é mau. “Qual é o problema de ser política? Política não é só eleição, não é só falar de um político. Política é tudo o que a gente vive em sociedade, e tudo o que a gente faz afecta o mundo e o mundo traz de volta e nos afecta.”

Um livro de autocuidado feminista poderá ser também sinal de alguma exaustão do movimento? Maynara Fanucci, a quase dez mil quilómetros das mobilizações no país natal, reconhece um certo risco de burnout das pessoas que compram este debate nas redes sociais. Se, por um lado, a acalenta ver o movimento a expandir-se e receber respostas de mulheres para quem a página foi uma ajuda, este é também um trabalho contínuo, muitas vezes “exaustivo”. Por vezes, explica, as próprias seguidoras dizem que “não aguentam mais tanta notícia ruim, ver que mulheres estão morrendo, que mulheres estão sendo estupradas ou violentadas”. “Ainda tem muito para fazer, tem muito para lutar.”

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