“Fora Cunha!”, o grito feminista contra o Brasil conservador

Manifestantes protestam contra endurecimento da criminalização do aborto. Autor do projecto-lei é Eduardo Cunha, o deputado sobre o qual se acumulam suspeitas de corrupção.

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Eduardo Cunha está "a acabar com a ideia de democracia no Brasil", disse uma manifestante Kathleen Gomes

Efeito-borboleta é a descoberta de contas milionárias de um deputado na Suíça provocar uma manifestação feminista no Rio de Janeiro. Quarta-feira ao final da tarde, Marina e Milena, duas adolescentes, apanharam um autocarro lotado na zona sul em direcção ao centro da cidade para protestar contra Eduardo Cunha, o presidente da Câmara dos Deputados que, apesar das evidências de que possuía contas secretas na Suíça e apesar de ter o seu nome envolvido no escândalo de corrupção na Petrobras, recusa afastar-se do cargo. “Cunha é o karma do Brasil”, diz Milena – 18 anos, umbigo de fora – como se fizesse a síntese de uma novela demasiado familiar. Todos os dias, a imprensa brasileira dá conta das manobras de bastidores e jogos de alianças que têm permitido a Cunha permanecer uma das figuras mais poderosas e consequentes da política brasileira. Apesar das suspeitas que recaem sobre ele, Cunha tem, por exemplo, o poder de aceitar ou travar um processo de impeachment contra a presidente Dilma Rouseff, além de decidir toda a agenda legislativa na câmara baixa do Congresso.

“Ele tem um poder absurdo. Está a acabar com a ideia de democracia no Brasil. Só faz o que quer, como suspender a votação de leis se o resultado previsto não lhe agradar”, diz Marina, 17 anos.

Eduardo Cunha é também o autor de um projecto-lei que visa endurecer a criminalização do aborto – que já é ilegal no Brasil –, tornando-o mais difícil para vítimas de violação e punindo com prisão quem induzir ou auxiliar uma mulher a interromper a gravidez, entre outras medidas. O Código Penal brasileiro prevê penas de prisão de um a três anos em caso de aborto e apenas permite interrupção voluntária da gravidez no sistema de saúde pública em casos de violação, quando a gravidez põe em risco a vida da mulher ou quando o feto é anencéfalo (anomalia congénita que se caracteriza pela  ausência de cérebro). Em caso de violação, a mulher pode ser directamente atendida por um médico sem ter de apresentar um relatório policial. Mas a proposta de lei de Cunha pretende mudar isso, exigindo a apresentação prévia de um exame e de um relatório policial comprovando a ocorrência de abuso sexual. O texto também prevê um agravamento penal para o anúncio ou uso de substâncias abortivas.

O projecto-lei foi aprovado na semana passada por unanimidade na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados e deverá ir a votação no plenário na próxima semana. Em Fevereiro, quando assumiu a liderança da Câmara de Deputados, declarou que a legalização do aborto só seria votada por cima do seu cadáver.

Sob gritos de “Fora Cunha!” e “O Cunha é ditador”, mais de um milhar de manifestantes protestaram contra o projecto-lei, conhecido como PL 5069, na Cinelândia, frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, na quarta-feira.

“De alguma forma, esse projecto-lei coloca o aborto como um crime maior do que a violação”, diz Clara Guimarães, uma psicóloga de 33 anos. Clara não tem muita esperança de que a mobilização tenha impacto directo em Brasília. “Acho difícil. Esse Congresso é o mais conservador de sei lá quantos anos. Os políticos conservadores são os mais votados – Jair Bolsonaro, Eduardo Cunha...”

Cunha tornou-se presidente da Câmara dos Deputados graças ao apoio das bancadas mais conservadoras e moralistas – conhecidas como bancada Bala, Boi e Bíblia, por representarem os interesses das indústrias securitárias, agropecuárias e das igrejas, com destaque para as evangélicas – e é essa maioria parlamentar que lhe serve agora de escudo de protecção para se manter no cargo. Cunha tem feito por fortalecer essa aliança: só na última semana acelerou a votação de propostas legislativas polémicas que correspondem às prioridades dos parlamentares conservadores e que se encontravam em ponto morto, mais coisa, menos coisa – como um projecto que liberaliza o porte de armas, uma proposta de emenda constitucional que tornará mais difícil a reclamação de terras indígenas e o PL 5069, que data de 2013, cuja autoria é assinada por 13 deputados, todos homens, muitos deles evangélicos.

“O Cunha é a pior coisa que aconteceu nos últimos anos no Brasil, politicamente”, diz Clara Guimarães, que levou o filho António, de um ano de idade, para a manifestação. “Ao mesmo tempo, agradeço que isto esteja a acontecer porque abriu uma discussão sobre o que é ser mulher, sobre os seus direitos, sobre a própria questão de género na nossa sociedade. A diferença que eu vejo é que este movimento é uma resposta ao caminho conservador.”

Nas duas últimas semanas, dois outros acontecimentos provocaram um debate nacional sobre sexismo e violência sexual. Uma menina loira de 12 anos, concorrente do novo programa  televisivo Masterchef Júnior, foi alvo de uma série de comentários pedófilos e ofensivos nas redes sociais – não de homens sinalizados como pedófilos, mas de filhos, maridos e pais aparentemente normais, como notou uma colunista. Isso deu origem à campanha #primeiroassedio, à qual mulheres de várias gerações aderiram em massa, publicando depoimentos pessoais sobre as suas primeiras experiências de assédio sexual.

Enquanto isso, seis milhões de pessoas realizaram a prova de acesso ao ensino superior, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), na qual tiveram de elaborar uma redacção cujo tema era a persistência da violência contra a mulher e responder a uma pergunta sobre Simone de Beauvoir, entre outras. Na terça-feira, numa audiência no Senado, o Ministro da Educação, Aloizio Mercadante, respondeu às críticas de alguns parlamentares de que a prova tinha “um viés de esquerda”. “Evidentemente que o ENEM não pode ser o exame da educação marxista", disse. "Mas, enquanto estivermos lá, também não vai ser da educação machista."

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