“Os Estados-membros da UE não confiam uns nos outros”

Eurodeputado desde 2009, vice-presidente do PPE, “número um” da lista do PSD às europeias de Maio, conhecedor profundo dos centros de poder da UE, Paulo Rangel reconhece que esta crise não é como as outras. É o produto de uma crise ocidental, mas também de várias crises internas — da crise das suas democracias à crise socioeconómica que resulta da digitalização e da globalização, passando por uma crise identitária.

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O que esta crise tem de mais complexo é que não é apenas uma crise europeia, é uma crise global e, sobretudo, uma crise ocidental. Que se manifesta, diz Rangel, em duas grandes dimensões. Uma primeira, socioeconómica e sociocultural, que divide as sociedades ocidentais entre os que têm acesso ao conhecimento e os que não têm. Uma outra, mais perigosa, que afecta as democracias liberais. A primeira é mais fácil de combater do que a segunda. Insiste em que o único problema do Leste não é Viktor Orbán, membro do PPE, mas também a Polónia, a Roménia ou a Eslováquia. Mesmo assim, admite que o Fidesz, liderado pelo primeiro-ministro húngaro, não devia manter-se no PPE. Critica o Governo português por não tirar as devidas lições do “Brexit”, incentivando a criação de um clube de países de vocação atlantistas que possa colmatar a saída do Reino Unido, que altera os equilíbrios geopolíticos europeus num sentido mais continental.

Já ninguém nega a crise que a União atravessa e que, não por acaso, muita gente chama de crise existencial. Costumava dizer-se que a Europa avançava de crise em crise, mas agora não será bem assim. Em que é que esta crise é diferente das anteriores?
O que esta crise tem, digamos, de mais problemático, é que ela não é bem uma crise europeia. É uma crise global ou, melhor ainda, uma crise ocidental. O “Brexit” trouxe à luz do dia, essencialmente, um conflito entre uma classe que é info-excluída e outra que é info-incluída — entre aqueles que são os ganhadores deste binómio digitalização-globalização, e os perdedores. E que está também reflectida em muitos outros países. Este é um aspecto, se quiser, de um certo fosso socioeconómico, mas que até é mais do que isso, é sociocultural, porque tem muito a ver com o problema do conhecimento e de quem domina o conhecimento. O referendo britânico ocorre em Junho de 2016, a 8 de Novembro é a eleição de Trump, agora a eleição de Bolsonaro e, entretanto, tivemos réplicas disto em todo o lado…

Recentemente, os gilets jaunes
Ou na Itália, embora aí seja tudo mais complexo, porque mistura as várias crises. Depois, há uma segunda crise, que também é ocidental, que é a da democracia liberal. Não é apenas o problema socioeconómico ou sociocultural. Ao mesmo tempo, temos uma imitação de modelos como o de Putin ou de Erdogan, que nos apareceram no Leste europeu. Nunca caio na tentação de dizer que é apenas Orbán — antes fosse que tornava tudo mais fácil.

Mas é ele também, sem qualquer dúvida…
Também é. E é talvez o mais eficaz, porque é aquele que melhor tem conseguido trazer esse discurso para o espaço europeu. Mas atenção: a Roménia tem este problema, a República Checa também, ou a Eslováquia e a Polónia. O que estamos a dizer é que governos socialistas, como a Eslováquia e a Roménia, governos do PPE, como o caso da Hungria, conservadores, como o caso da Polónia, ou liberais como o primeiro-ministro Babis na República Checa, que é um pouco oligarca…

Que é diferente, é um empresário.
Mas verificamos a mesma coisa na Geórgia, na Moldávia, na Ucrânia, que são paradigmas até mais deteriorados do que a Rússia, porque estão menos estruturados, e que têm muito um modelo do oligarca pós-queda da União Soviética. O que há de comum aqui é um ataque à democracia liberal neste sentido: eles são a favor da vontade da maioria, não têm medo de eleições, nem de eleições justas e livres pelo menos formalmente — porque acham que as ganham —, mas defendem que a vontade da maioria deve prevalecer sobre tudo. Neste sentido, são quase “rousseaunianos”, pondo de lado [John] Locke e Montesquieu.

Rejeitam a democracia liberal, que é aquela que vivemos no Ocidente, anulando muitas das suas componentes fundamentais.
Há traços disso, por exemplo, em Trump.

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Mas a democracia americana consegue resistir a isso, o que não acontece nesses países que mencionou.
Não que Trump consiga fazer isso, num sistema como o americano, fortemente contra-maioritário. Mas tem uma hostilidade aos tribunais, por exemplo…

E aos media… que é comum com a Polónia ou com a Hungria.
Ou com a Roménia ou com a Eslováquia… É no Leste que temos este padrão. O que quero dizer é que esta crise não é apenas europeia. Ela está a ser sentida, por um lado, nos EUA e no Brasil, pelo menos quanto ao que eu chamaria numa linguagem marxiana — não marxista —, mas que olha outra vez ao problema dos blocos socioeconómicos e culturais, que existem nas sociedades. Como [Alexis de] Tocqueville demonstrou também, ou Montesquieu…

No fundo, às diferentes classes.
Podem não ser as classes no sentido marxista porque a sociedade industrial desapareceu. Mas é importante reler Marx e Montesquieu, que foi uma espécie de sociólogo avant la lettre, ou Tocqueville, que também nunca renunciou à ideia de classes… Até o próprio Aristóteles tinha a ideia de que é preciso uma ampla classe média para haver uma democracia funcional. É um ensinamento ancestral da cultura ocidental. Há portanto esse lado, e há outro lado, mais constitucional ou mais político, que é a ideia de que a liberdade de expressão, os direitos das minorias, a independência dos tribunais, devem ceder perante a vontade da maioria. Que é uma coisa perigos, porque a democracia se alicerça na regra da maioria mas dentro de um determinado contexto. 

Sem a liberdade do indivíduo não há democracia, tal como a entendemos no Ocidente.
Sempre com a Declaração de Direitos à cabeça. No fundo, aquela tradição francesa de que as Constituições mudam mas a Declaração de Direitos não muda. Ora, isto não é só europeu. Para mim, é redutor considerar que se trata de uma crise europeia.

Mas o facto de não ser uma crise apenas europeia, não quer dizer que não atinja a União Europeia de forma particular, como estamos a ver. O seu reflexo transmite-se ao próprio funcionamento da União e aos seus fundamentos. Tem consequências que aparecem como uma ameaça ou um risco directo para a integração.
Aí, dou-lhe razão no sentido de que, sendo ela uma crise das sociedades ocidentais e dos seus modelos, porque a União Europeia está assente neles… No fundo, o seu espaço comum era, por um lado, o espaço de alguma coesão social, aliviando a tal divisão de classes… Nunca podemos esquecer que metade da despesa social do mundo inteiro é feita na UE.

Para 7% da população mundial.
O que lhe dá uma grande coesão. O segundo aspecto é que o património comum que unia os seus países era a democracia liberal. Ora, se o património comum está em causa, [esta crise] para a UE é mais ameaçadora do que, por exemplo, para os EUA ou para o Brasil.

Por isso lhe perguntava se esta crise não é diferente de todas as outras.
É evidente que aqui tem estas consequências. Qual é o país que me parece que tem um papel de charneira ou, quase, de laboratório? É a Itália, onde as várias crises se conjugam — três crises, do meu ponto de vista. A primeira é a da zona euro, mais económica, que tem a ver com as tais pessoas que ficam para trás — e que é, apesar de tudo, aquela com que estaremos mais preparados para lidar, porque já tivemos outras crises económicas e fomos capazes de recuperar. Na Itália, o problema é que há uma estagnação desde 2000. Depois, há a crise das migrações, que põe o problema da identidade e, de repente, o que vemos em Itália é que tem o problema próprio dos países do Sul, mas também tem o dos países de Leste.

Com a rejeição dos imigrantes?
Exacto. Que se deveu também a algum abandono e incúria da UE numa fase inicial.

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Em que a Itália e a Grécia tinham de receber toda a gente e foram deixadas sozinhas.
A salvar, a tratar, a integrar e, dos outros países, havia muitas vezes a rejeição mais ou menos dissimulada daqueles que queriam ir de Itália para a França, para a Alemanha ou para a Áustria.

Sim, no caso dos imigrantes, há uma enorme responsabilidade anterior dos outros países da UE, que é bom não esquecer.
Há uma responsabilidade anterior no caso da Itália e no caso da Grécia. Apesar de tudo, podíamos ter prevenido ou mitigado a situação. Mas há ainda uma terceira dimensão, que diz respeito à democracia liberal e que é a questão do [partido italiano] Cinco Estrelas. Salvini não inova muito face…

... à extrema-direita tradicional…
À direita radical, enfim, acho que não é bem uma extrema-direita…

Não são fascistas.
Não são contra o Parlamento. Fazia parte da ideologia fascista ser antiparlamentar, antiliberal, anti-individual. Eles são antiliberais no sentido político do termo, mas gostam do Parlamento. Mas, num certo sentido, que pode parecer provocatório, o Cinco Estrelas é mais perigoso do que a Liga de Salvini. Porque faz a apologia da democracia directa. Este é que é o grande problema. Esta ideia da ditadura da maioria torna-se muito mais problemática num contexto de democracia directa. O que queriam [teórico inspirador do Cinco Estrelas] Casaleggio e depois o seu filho, os mentores do movimento, era criar uma teledemocracia, uma espécie de democracia digital em que, às quintas-feiras pelas oito da noite, cada um está diante do seu computador ou do seu tablet e vota. E o voto é apurado por uma black-box que ninguém controla, que é, aliás, o que acontece dentro do Cinco Estrelas — nunca sabemos bem se os resultados são fiáveis ou não. O que eles defendem é a ideia da abolição do Parlamento. E isto não acontece apenas ao nível do voto. Se olharmos para as redes sociais, quando elas estão a tomar o lugar dos meios de comunicação social tradicionais, a sua lógica também é a lógica directa: cada pessoa dá a sua informação. A ideia da democracia participativa, levada ao seu limite — porque agora tem condições tecnológicas para ser levada ao limite —, é antidemocrática no sentido da democracia liberal. No fundo, o Parlamento é substituído por um voto electrónico directo e, ao mesmo tempo, os mass media são substituídos pela interacção directa dos cidadãos através das redes sociais.

Coisa que já tínhamos verificado que era um problema sério antes do Cinco Estrelas.
Na Itália, o Cinco Estrelas tem aspectos mais simpáticos a qualquer democrata do que Salvini, mas também tem aspectos muito mais antipáticos. É perigoso, porque é fácil vender a ideia de que nós é que devemos ter o nosso destino nas mãos. Não é por acaso que [o vice-primeiro-ministro italiano, Luigi] Di Maio tenha ido a Paris apoiar os gilets jaunes: passamos da democracia directa para a acção directa. E a acção directa já é alguma violência nas ruas.

Que não pode ser tolerada em democracia.
Sim. Nas democracias liberais que nós defendemos e que queremos continuar a defender. Mas repare: há aqui um contínuo entre voto electrónico, rede social e acção directa nas ruas. Há uma linha cujo objectivo é destruir a democracia representativa. As classes políticas também contribuíram muito para esta situação, não digo o contrário. Mas chamo a atenção para que a Itália faz convergir estas três crises: a crise política, a crise identitária e a crise económica.

Alguns factores da crise vinham de trás. Os efeitos da globalização não são de agora e acabaram por explodir na crise financeira de 2008. Tiveram consequências pesadas na Europa, que os europeus tiveram muito mais dificuldade em gerir do que os EUA. Mas a classe política europeia não conseguiu encontrar respostas novas, uma mudança de política ou sequer de narrativa. Parece que tudo regressou ao business as usual. É isso que é um pouco angustiante.
Porque nós não tivemos, em nenhum dos países da UE, lideranças que fossem capazes de reatar a ligação com os cidadãos. E é isso que estimula a democracia directa. É a ideia de que os representantes não são capazes de responder aos seus problemas. Claro que isto tem razões estruturais para as quais também é preciso olhar. Nós temos hoje uma resposta nas democracias que é territorial. Eu, quando voto, voto num círculo territorial, físico, para eleger as pessoas que o representam. Em Portugal, em Espanha, na Bulgária, na Polónia. Mas a solução dos problemas não está aí sediada. Está em espaços maiores, e isso tem que ver com a UE e, por vezes, nem aí, já não é sequer territorial. Houve uma desterritorialização do poder. Quando falo dos mercados, os mercados são virtuais, num certo sentido. Eles não têm uma implantação territorial. Quando falo na poluição e nas alterações climáticas…

Não são um problema confinável.
Ou seja, o Estado vestefaliano que foi construído depois da Guerra dos Trinta Anos, e que assentava no povo, no território e na soberania, está desactualizado.

Foi posto em causa pela globalização, pela revolução tecnológica…
Pelo lado positivo e negativo de ambas. Também há um lado positivo, como a mobilidade que trouxe à vida dos humanos, dos cidadãos, a capacidade de estar em contacto com o mundo inteiro ao mesmo tempo, tornou o território, não uma unidade de poder caduca, mas relativamente menos importante.

Mas isso só justifica a necessidade de um espaço mais alargado para enfrentar os problemas do nosso tempo.
Estou de acordo, mas digo que não é suficiente. Não basta mudar a escala. Alguns dos problemas que a democracia tem de resolver já não são sequer problemas de escala geográfica.

Mas há muitos problemas que a escala europeia resolveria e há um adquirido de comunhão de destino que se foi construindo e que é hoje, de alguma maneira, posto em causa porque é a política que está a falhar.
Sim, porque a política mudou de natureza. Antes era estritamente territorial.

Não é isso que torna a UE impotente para resolver os principais desafios que enfrentamos.
Temos tido lideranças que nos inspiram alguma confiança, como é o caso de Merkel. E outras que nos inspiram alguma esperança, como Macron. Mas, na verdade, também nenhum deles ousou ir mais além. Estão demasiado presos nas suas circunstâncias.

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Hoje, verificamos uma fragmentação dos sistemas partidários na generalidade dos países europeus. Como dizia o meu anterior entrevistado, Carl Bildt, isso torna a função de governar muito mais difícil. E assistimos também à emergência de uma corrente que sempre foi a causa da destruição europeia e que ainda não mencionou —​ o regresso do nacionalismo, enquanto corrente que a integração europeia quis deslegitimar. Marine Le Pen, Salvini, Orbán, UKIP, AfD…
Creio que o nacionalismo está mais arreigado no Leste. A ocidente, o que vejo é em Itália, França.

A Alemanha tem um partido nacionalista com 14% dos votos.
Sim, mas acho que estes movimentos não são todos iguais. Em cada país reflectem realidades diferentes. Em Espanha, por exemplo, é muito mais um problema interno do que antieuropeu. Da Catalunha ou do País Basco, por arrasto.

O problema espanhol é interessante porque o nacionalismo catalão está a provocar, em reacção, o nacionalismo espanhol e aí há um problema europeu.
Alimentou-o fortemente porque os dois precisam um do outro. Um fez despertar o outro, que estaria adormecido. É um problema mas eu sinceramente… Quando o “Brexit” é o resultado do referendo, em países como a Holanda ou a Dinamarca, onde as críticas à UE eram fortíssimas, desceu imenso a vontade de sair da União. Desapareceu e antes era expressiva.

Graças ao caos em que caiu o “Brexit” no Reino Unido.
Alguns destes movimentos — não é o caso de Le Pen ou de Salvini —​ não são bem antieuropeus, nesse sentido nacionalista. Querem uma Europa diferente. Diria que temos circunstâncias diversas, país a país. Estou de acordo em que há uma leitura comum neste sentido: todos eles são mais ou menos hostis à União Europeia.

E, se calhar, apenas disfarçam essa hostilidade dizendo que querem outra Europa.
Uma Europa diferente, uma Europa das nações.

Mas essa é justamente a questão identitária. As pessoas olham para o futuro e vêem incerteza sobre as suas vidas e as dos seus filhos, mesmo que tenham o mesmo conforto. Temem o futuro. Refugiam-se na identidade nacional, na nação. Isto não vai contra o espírito da construção europeia?
Mas a UE pode ser ela própria uma fonte de segurança e de protecção. Se conseguir ser. Esse é que é o caminho. Se eu tivesse de lhe dizer qual é o traço essencial — até da minha experiência empírica —, as pessoas estão dominadas por esse sentimento de instabilidade, de incerteza, de imprevisibilidade, de angústia. A ideia de que os filhos e os netos podem ter uma vida que pode ser pior do que a sua, que pode até ser má, gera uma grande insegurança. E isso está a alimentar esse sentimento negativo. Temos de encontrar, do ponto de vista europeu, políticas que reafirmem a segurança. Que sejam, digamos, pacificadoras e estabilizadoras.

E dirigidas às pessoas?
Dirigidas às pessoas. Por exemplo, as migrações — ter, por exemplo, uma guarda costeira e de fronteiras devidamente apetrechada, de forma a que as pessoas possam ter confiança…

Nem sobre isso os governos se entendem, como sabe.
Quando passamos à prática, não é fácil convencer a marinha portuguesa ou a francesa que vão ter navios a patrulhar as suas águas territoriais que não são portugueses nem franceses e que são eles que vão fazer as operações de salvamento, de patrulhamento, de apreensão. Se tivermos um controlo de fronteiras que seja confiável… Porque repare, países que têm padrões de respeito pelos direitos humanos idênticos aos nossos, como o Canadá ou a Austrália, têm polícias de imigração e de fronteiras bastante austeras. Para protegermos quem precisa de ser protegido, temos de ter um controlo seguro e eficaz. Temos de ter, também, uma verdadeira política de imigração — para que os refugiados possam entrar e para que os imigrantes económicos de que vamos precisar, quer queiramos quer não, possam entrar em condições em que haja alguma triagem e até com alguma selecção por sectores, que admito que seja necessário fazer. Não acho que isso tenha de ser necessariamente anti-humanitário. Na Constituição portuguesa e em muitas outras está no mesmo artigo o direito à liberdade e à segurança. Sem segurança não há liberdade. Estão ambas em tensão…

E o equilíbrio encontra-se nessa tensão.
Ninguém veja aqui uma abordagem securitária, que não tenho. Mas, para mim, este seria um aspecto muito importante — termos fronteiras em que tivéssemos capacidade de controlar os fluxos. A partir daí, acho que até teríamos melhores condições de ter uma intervenção muito mais humana nos campos de refugiados, sem porventura ser preciso gastar mais dinheiro.

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"A UE tem regras pensadas para um mundo que já não existe"

E falta a distribuição do “fardo”, que continuamos sem conseguir resolver.
Aí é claramente o Leste que está a impedir. Sinceramente, talvez tenhamos de evoluir para aquele modelo que agora está em discussão — os que não querem receber imigrantes têm de contribuir financeiramente para aqueles que estão disponíveis. Talvez tenhamos de evoluir para aí, sob pena de continuarmos neste impasse que me parece muito prejudicial. Não é apenas o efeito directo sobre a realidade, é o problema da expectativa das pessoas, da confiança das pessoas. É muito interessante ler nos dias de hoje uma entrevista de Mario Monti de 2012 em que ele dizia — mais a propósito da confiança na zona euro entre os do Norte e os do Sul — que a Europa estava em risco de “dissolução psicológica”. Eu diria, talvez, em dissolução fiduciária, da confiança.

A crise aumentou imenso a desconfiança mútua.
Quanto houve a crise da zona euro, houve o problema da desconfiança mútua entre o Norte e o Sul. E eu costumava dar sempre a crise do pepino espanhol…

Que era alemão.
Que era alemão. A ideia de que o Sul não cumpria as regras fez com que produtos hortícolas da zona de Bremen fossem atribuídos a Valência. Sendo que Bremen está falido há muito mais tempo que a Grécia.

Criou-se um preconceito pernicioso que, se se mantiver, pode causar estragos?
Que foi muito aumentado pela crise. Basta olhar para o superavit comercial alemão, que é três vezes superior em termos absolutos ao chinês. Em 2018, a Holanda tem um superavit comercial superior ao da China, um país com 16 milhões de pessoas. Basta isto para perceber que o euro não foi um mau negócio para estes países.

Pois não. Foi excelente.
Esta ideia de que os outros se estão a aproveitar não tem sentido nenhum. É um preconceito fabricado. É um mito.

Mas é um mito perigoso para a coesão política europeia.
Em 2014 e 2015, estes preconceitos aquietaram-se bastante. Houve ali um problema que foi a emergência do Syriza, que voltou a criar todas as desconfianças por causa da lógica [Yanis] Varoufakis.

Mas o Syriza portou-se à altura dos acontecimentos.
Eu penso que, no plano económico, temos condições de, melhor ou pior, resolvermos esta crise de confiança e penso que ela está ultrapassada. Na questão das migrações é que não está, incluindo a questão das identidades. E, portanto, continua a haver um problema da dissolução da confiança entre os Estados-membros, que não confiam uns nos outros. A Hungria não confia na Alemanha.

A Polónia deixou de confiar na Alemanha.
Ou na França. A Itália criou um conflito com França que, se alguém me dissesse há um ano que poderia acontecer, eu diria que era impossível.

Com a retirada do embaixador?
É impensável ter chegado a este nível. Não é aceitável que um ministro italiano esteja a dar apoio a manifestantes que estão a usar da violência. A usar e a abusar. Não é um incidente, é uma coisa deliberada. E há nesse encontro um intuito provocatório. Mas há aqui um outro ponto que gostaria de chamar a atenção. A Europa da Guerra Fria era, na prática, uma Europa que estava congelada. De um lado, estava a União Soviética — por simplificação, a Rússia — e, do outro, os EUA: metade estava sob a esfera atlântica e a outra metade sob a esfera euroasiática da Rússia. A Europa estava ocupada. É verdade que a metade atlântica…

...era livre, o que faz toda a diferença.
Sim. Mas Portugal e Espanha, por exemplo, não eram. Mas havia uma grande diferença porque os dois impérios tinham uma concepção totalmente diferente sobre como os cidadãos deviam viver. Agora, as duas estão em retracção. Mas mantêm um softpower, um poder de influência brutal. Putin fez do Estado russo uma espécie de KGB global — as fake news, as interferências nos processos eleitorais, nós sabemos que parte dos IP da Catalunha estão sediados em Moscovo, o Snowden está em Moscovo… Mas, por outro lado, Trump também teve um efeito muito relevante nesta crise de confiança. Vou dizer uma coisa que é evidente e outra que talvez seja ir um pouco longe demais nalgum inside-trading. A primeira é que as embaixadas americanas na Polónia, Itália, Hungria, Roménia dão apoio a esta visão mais hostil à Europa.

Até em Berlim e publicamente.
No caso da Alemanha chegou a haver uma coisa muito estranha, que foi o chanceler austríaco, Sebastian Kurz, ter ido almoçar com o embaixador americano em Berlim, quando ele deve almoçar com o embaixador americano em Viena. Em Berlim, chegou a haver algumas afirmações do embaixador americano simpáticas para a AfD. Por exemplo, no caso das relações de Viktor Orbán dentro do PPE, há um antes e um depois de Trump. Orbán foi sempre muito criticado e chamado à pedra no PPE e sempre recuou. Depois de 2016, o seu discurso tornou-se muito mais robusto.

Já agora, o Fidesz  deve ficar no PPE?
Sinceramente, de há bastante tempo a esta parte, em especial desde os alvores de 2017, que creio que o Fidesz deve sair do PPE. Preferia que saísse pelo seu pé. Tenho defendido isso na presidência ao lado de vários outros, designadamente holandeses, finlandeses, polacos e romenos. Muitos dos valores e dos quadros do partido têm préstimo, alguns estão até próximos do PPE. Mas a linha oficial do partido na Hungria está cada vez mais longe do europeísmo do PPE e, mais grave, continua a pôr em causa — mesmo que só retoricamente — princípios basilares do Estado de direito democrático. 

Lembra-se do que Orbán disse no dia da eleição de Trump? “Este é um grande dia.”
E é por isso que o PSD, por exemplo, votou sempre contra as posições do Governo húngaro, mas só vimos o PPE votar maioritariamente pelo art.º 7.º no Parlamento Europeu agora. Porque ele deixou de recuar. Putin desempenha um papel negativo, sobretudo na agitação — e isto pode valer para a Catalunha, como para a Itália, como para a Hungria, por exemplo, com um preço da energia que é bastante inferior e que permite que a factura energética dos húngaros favoreça a eleição de Orbán. Teve um papel no “Brexit” como hoje sabemos. Foram eles que financiaram Le Pen — sobre isto já não há grandes dúvidas. Mas hoje um certo apoio institucional das embaixadas americanas a estes movimentos também existe. As duas antigas superpotências, que tinham alguma influência sobre a Europa, hoje estão a actuar de uma forma informal, não com a mesma presença que tinham, mas de uma forma que objectivamente converge para o enfraquecimento da União.

Com uma “pequena” diferença: Putin invade a Ucrânia e Trump apenas não quer pagar o preço da segurança europeia.
Os EUA não estão numa situação de não democracia, pelo contrário. São uma democracia resiliente. Só estou a dizer que há uma agenda. Trump, em muitos aspectos, continuou as políticas de Obama que estavam erradas, do meu ponto de vista — e eu sou um admirador de Obama. Mas ele voltou-se demasiado cedo para o Pacífico e redescobriu a Europa demasiado tarde. Quando a redescobriu, teve perfeita consciência de que era preciso…

E aí actuou em perfeita consonância com a UE.
Foi tarde no “Brexit” e foi tarde no TTIP [Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento], como, aliás, aconteceu no Pacífico com a Parceria Transpacífica. Trump está muito consciente do poder da China e é esse poder que ele quer combater. Obama, creio, tinha encontrado a forma inteligente de combater a ascensão do poder da China: fazer um acordo de comércio com todo o Pacífico.

Menos a China.
Menos a China. E uma espécie de mercado comum transatlântico

Que dava um poder enorme às economias do mundo ocidental...
Passaríamos a ter regras próprias preferenciais. Ele ia construir dois blocos que teriam alguma preferência sobre a China. E, com isto, iria amortizar alguns dos efeitos negativos da globalização. Ora, foi isto que Trump não compreendeu.

Falou da influência americana na Europa, que sempre existiu desde a II Guerra. Falou da Rússia e da China. O desafio europeu talvez mais complexo está fora das suas fronteiras. O mundo parecia estar-lhe de feição. Hoje o mundo corre em sentido inverso da própria ideia de integração europeia, deixando-a sem estratégia. Os EUA abandonam-na. A Rússia ameaça-a. A China deixou de ser apenas um mercado para ser uma potência também interessada em dividir a Europa. Como podemos enfrentar este novo ambiente estratégico?Curiosamente, nesta nossa conversa há um grande ausente, que é talvez aquele com que a Europa pode encontrar uma parceria…

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A Índia?
Não. Mesmo que a Índia tenha aqui alguma coisa a dizer. A África.

Mas a África está noutro tabuleiro…
Mas é a região com a qual a Europa pode ter uma parceria win-win.

Mas não resolve os desafios externos que têm de enfrentar já.
Sim, mas o continente africano tem um potencial brutal para a Europa. A China, aliás, já descobriu isso há muito tempo. Mas é o espaço natural de parceria para a Europa, o que, para Portugal, seria muito interessante porque temos uma tradição africana fortíssima e uma proximidade com o Norte de África que também nos permite tirar partido.

Como outros europeus também têm.
Claro. Há aqui um condomínio natural. Claro que terá de haver alguma moeda de troca. Mas isto não tem que ver com o aspecto da defesa. Neste caso, eu não daria por perdida a garantia americana. Diria que está numa fase de ajustamento. Em parte pela questão da factura, e aí creio que os europeus já compreenderam que têm mesmo de pagar a sua parte. Mas também admito que, numa fase pós-Trump, nós possamos regressar ao paradigma em que haja esse equilíbrio financeiro mas em que os EUA estejam disponíveis. Nem sempre os americanos têm a noção de que nós somos o seu “quintal das traseiras”. Desguarnecer a Europa é um risco enorme para os EUA.

Mas Trump vê na China o maior desafio e se calhar os outros que vierem a seguir também vêem.
Mas é por isso mesmo que não podem desguarnecer a Europa. A China está a jogar em todos os tabuleiros. No continente asiático, em África e na América Latina

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E agora no continente europeu.
E agora também aqui. Portugal é um bom exemplo, a Grécia é outro. E não só. Mas não foi por acaso que vieram para os países que precisavam mais de liquidez. Eu não aceito — e disse-o a Merkel quando ela disse que não compreendia as decisões de Portugal na EDP ou na REN — que era preciso lembrar que foi a troika que impôs isso.

Quando obrigou a privatizar de qualquer maneira.
E ao melhor preço. E o melhor preço não foram os alemães ou os franceses que ofereceram. Não havia nenhuma hostilidade ao investimento chinês mas se pudesse ter distribuído de outra forma, o Estado português estaria muito receptivo, porque não tem nenhum interesse em pôr os ovos todos no mesmo cesto.

Até há pouco tempo, a China era apenas o seu descomunal mercado. Agora o registo mudou: é o receio dos investimentos. A Alemanha é um caso paradigmático desta mudança porque também representava quase metade das relações comerciais com a China. O debate mudou. E vê agora o ministro da Economia alemão falar de uma nova política industrial e defender os “campeões europeus” à francesa.
Em primeiro lugar, [Friedrich] Altemeier, que eu conheço bem, é um grande europeísta e um homem muito influenciado pela cultura francesa. É um alemão, apesar de tudo, especial.

Mas isso não justifica uma mudança da parte da Alemanha.
Sim, mas também revela uma coisa de que nem todos estamos cientes. As regras de concorrência europeias estavam bem feitas para um mercado interno de 500 milhões de pessoas. O problema é que estamos hoje num mercado global. E a União começa a sentir a necessidade de ter protagonistas globais. Quando olhamos para as plataformas digitais que só têm protagonistas americanos e que são quase monopolistas, com dimensões superiores a muitos Estados e até Estados prósperos…

Mas são as tais indústrias que mudam tudo, que são “disruptivas”, como diz a própria chanceler.
Que são disruptivas. Uma vez ouvi Henry Kissinger em Barcelona, em 2010, dizer: atenção, o automóvel, entre 1890 e 2010, não mudou nada. Continua a ter quatro rodas, um volante, um motor a combustão. O que muda é a Internet e até o telemóvel, que já não é um telefone. Dizia ele: isto é que nos interessa, esta inovação disruptiva. E ouvi a própria Merkel dizer que o grande problema da inovação da Alemanha não é não haver investimento em inovação, é a inovação ser conservadora. Era sempre aperfeiçoar o que já se tinha, mas não romper com o que se tinha, enquanto os americanos estavam dispostos a perder muito dinheiro com experiências falhadas até romperem.

Regressando a Altemeier…
Não vou dizer que assino por baixo o que ele está a dizer. Quando comecei a estudar Direito europeu, era quase tudo sobre a concorrência, que é quase uma liturgia ou uma ciência esotérica. Mas estou de acordo em que isto é um problema de escala. Quando estamos a falar da escala global, as nossas regras de concorrência podem estar a ser limitativas da nossa capacidade de afirmação económica global.

Não estava a criticar Altemeier, estava apenas a constatar uma mudança. Falou agora da política de concorrência, houve o caso Siemens-Alstom e em Paris e Berlim já se está a falar de rever a política.
Aliás, pouco antes desta entrevista, acertaram na capacidade orçamental da zona euro. Aparentemente, vão dar um passo que até agora esteve em compasso de espera. Será um primeiro passo, mas creio que é muito importante.

O que quero é sublinhar a ideia de mudança... Há maior compreensão…
E a mudança está intrinsecamente ligada a isso: olhar para a China já não apenas como uma potência económica, mas como uma potência política e isso faz com que não seja apenas a oportunidade económica que está a conduzir a política europeia. Segundo ponto: a compreensão de que somos capazes de ter algumas regras pensadas para um mundo que já não existe. O Mercado Interno que construímos a partir de 1986 — aliás, de uma construção inglesa, de Sir Leon Britton e de outros — já não é o mercado de referência.

A propósito deste novo debate, surge outra questão polémica que é a questão da soberania europeia.
É Macron o grande defensor dessa ideia.

Mas quando a Alemanha insiste no screening do investimento estrangeiro ou fala em “campeões europeus” está também a ir ao encontro dessa ideia. Não corremos o risco de opormos ao “America First” o “Europa First”?
Não. Para nós, a grande perda será o “Brexit”. O grande problema de uma afirmação europeia é ela não ter uma dimensão atlântica, que lhe permita manter uma ligação forte aos EUA e às Américas em geral. Aqui é que os britânicos tinham um papel. Por isso tenho sido muito crítico da forma como Portugal tem lidado com a questão do “Brexit”. Embora no curto prazo, a questão mais importante seja a questão do estatuto das pessoas e as perdas económicas, o que é comum a todos os países da União, a questão mais importante é a perda geopolítica. Quem é que vai representar o interesse atlântico na União? A Alemanha é uma potência continental, a França é uma potência continental que é atlântica e mediterrânea — tem um tripé. A única que tinha parecenças connosco era a Inglaterra.

E os pequenos países europeus da orla atlântica, da Dinamarca à Suécia.
Dinamarca, Holanda, Suécia, Irlanda, Portugal… A Bélgica menos. Por isso tenho sido muito crítico da estratégia portuguesa. O Clube Med é muito importante, os países da coesão são muito importantes, mas devíamos estar no clube atlântico. A partir do momento em que o “Brexit” emergiu, estes países têm interesses comuns, são pequenas potências periféricas, são extrovertidas, são marítimas e têm interesses comuns. Era uma forma de Portugal se relacionar directamente com contribuintes líquidos. Foi o que a Irlanda fez — um eixo com a Dinamarca e a Holanda a propósito do “Brexit”, que a levou depois para a Liga Hanseática, dos mais ortodoxos da zona euro. Podíamos ter um cavalo de Tróia nesses países a propósito do “Brexit”, e criar um verdadeiro Clube Atlântico. Sem o Reino Unido, vamos ter de ter, em alguns dossiers, uma voz comum. Se forem cinco países…

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Theresa May Dylan Martinez

Uma voz comum em relação a quê?
À geopolítica europeia.

À política externa europeia?
Sim e até à visão económica. E isto vinha a propósito da sua “Europa First”. Os países atlânticos nunca terão interesse em afrontar a América. Pode ser uma “Europa First” que tenha sempre a América em conta. Os dois países mais ocidentais da Europa são Portugal e a Irlanda. Não é por acaso que os dois países têm primeiros-ministros de origem indiana, porque estão abertos para fora, para o mar. O Índico, o Atlântico, o Pacífico são o seu território normal. Há muitos países que falam em tolerância, em abertura, etc., mas são os dois países únicos que fazem uma coisa que, noutros, seria problemática, e, nestes dois, não causa qualquer problema…

Pode acrescentar o mayor de Londres…
Posso. Porquê? Por causa desta visão aberta e extrovertida.

Como é que se constrói esse Clube Atlântico que mencionou, sem pôr em causa a nossa aliança preferencial com a Alemanha, que também já vem de trás? Com as actuais divisões entre Norte e Sul?
É essa a crítica grande que eu faço ao Governo.

O que devia ter feito?
Devia ter organizado uma cimeira atlântica para debater o “Brexit” e ter uma posição comum. E devia tê-la forçado. Dinamarca, Holanda e Irlanda estão a fazê-lo.

Como?
Têm reunido os três primeiros-ministros para alinharem uma posição. E foi aí que a Irlanda foi puxada para o Clube Hanseático, que procura manter essa fractura e que é liderado por uma pessoa muito preparada, Mark Rutte, mas também extremamente inflexível. Ainda estamos a tempo de fazer isso. E isso ajuda a criar a tal confiança para se avançar até noutros domínios — do que pode ser a zona euro, por exemplo. O que define mais Portugal não é ser do Sul ou mediterrânico. É ser atlântico. Costumo usar uma expressão que não é, por vezes, muito bem entendida: Portugal é uma ilha rodeada de mar e de Espanha por todos os lados.  

Falta a questão principal: a relação privilegiada que mantemos com a Alemanha, aliás consensual, e que tem sido vantajosa, apesar de tudo. Vamos fazer cimeiras com os atlânticos contornando a Alemanha e a França?
Sim. Essa relação tem um momento muito importante com o 25 de Abril. Quer a CDU, quer o SPD tiveram um papel muito importante no financiamento e treino dos políticos que emergiram na altura. E desde então a Alemanha nunca mais nos abandonou.

Isso é verdade, mas já na União Europeia tivemos sempre o cuidado de manter uma boa relação com a Alemanha. E este governo manteve-a.
É importante, mas a Alemanha não tem uma visão atlântica como nós temos. Um sueco compreende algumas coisas que lhes dizemos, um alemão não. Tem dificuldade. Atenção, a forma como nos vêem nem é paternalista, é de respeito. [Helmut] Kohl foi um aliado muito forte. [Gerhard] Schroeder manteve isso. [Angela] Merkel também.

Por isso, pergunto se esta relação não é igualmente muito importante e se devemos continuar a cultivá-la?
Temos de ter uma boa relação com todos e Portugal tem-na. Mas não podemos deixar que o eixo franco-alemão possa, por exemplo, pôr a relação com a América e as Américas numa certa crise. E aí somos muito diferentes da Espanha. Os políticos portugueses — estou a falar por exemplo dos que estão no PE — têm relativamente ao Reino Unido muito maior tolerância e complacência do que têm os espanhóis ou os franceses e alemães, que estão muito mais irredutíveis. Nós, como aliás os holandeses, quase que estamos disponíveis para, pelo menos, não ter afirmações tão categóricas, sem querer dizer que, ao fim, a firmeza não seja a mesma.

Até agora, olhámos para a Alemanha como um país modelar em termos económicos, capaz de se adaptar à globalização. Hoje, bastaram dois choques externos — o “Brexit”, a ameaça de proteccionismo americano e a desaceleração da economia mundial — para a sua economia cair muito. Não há verdades que durem sempre, é a lição?
Isso é aquilo que eu estou sempre a explicar aos meus colegas alemães, que era importante olhar para a reforma da zona euro com outra flexibilidade. E só eles podem mudar a atitude inflexível e problemática da Holanda, da Finlândia e da Áustria.

O que explica aos seus amigos alemães?
Que tinham de ser mais flexíveis, porque as coisas mudam. As condições que eles têm hoje e que lhes permitem estes superavits comerciais alucinantes…

Podem mudar amanhã?
Já estão a mudar e, portanto, era preciso criar outra consistência. O progresso dos países do Sul, que são mercados naturais da Alemanha, é bom para ela. E perante uma constipação externa, haver alguma capacidade de compra interna também é para eles uma coisa positiva.

Explicar-lhes que há um benefício mútuo?
Sim.

O problema é que eles não vêem isso.
Mesmo os políticos. Há de tudo, naturalmente. Há quem esteja consciente disso e que ache que já se devia ter feito muito mais na zona euro. Por exemplo, é incompreensível que a União Bancária ainda não esteja concluída. Talvez tenha que ver com razões internas, porque creio que os bancos regionais alemães não estejam numa situação assim tão boa e, aliás, ficaram de fora da supervisão do BCE. Às vezes, os próprios políticos do mainstream reflectem muito aquele preconceito que existe na opinião pública: que estão a pagar aos preguiçosos do Sul.

E que foi alimentado…
Eu diria que era natural, nunca foi contrariado e, pelo contrário, foi alimentado.

E hoje cria bloqueios que são prejudicais a todos.
Um grande deputado europeu que vai sair agora, Edouard Lamassoure, disse uma vez: convém nunca esquecer que a sr.ª Merkel governa essencialmente para os pensionistas alemães.

As eleições para o Parlamento Europeu preocupam muita gente. Há um risco de bloqueio?
Creio que há três linhas sobre as quais vale a pena pensar. Há um factor que nós, neste momento, não dominamos e que pode baralhar as previsões actuais — o que vai acontecer ao “Brexit”. Se houvesse um no deal e uma situação de caos, isso teria implicações sobre a votação, alterando as previsões de hoje. Não sei em que termos, mas penso que poderiam ser positivas. O desenlace do “Brexit”, seja ele qual for, pode ter mais ou menos consequências. Temos vários colegas conservadores no PE que não descartam a hipótese de fundar um novo partido com alguns trabalhistas.

A segunda linha é que a tendência será para a perda de algum peso dos partidos pró-europeus: PPE, socialistas, liberais e verdes. E que os extremos, em particular a direita radical, cresçam.

Qual é o reflexo disso?
Olhando para as sondagens, isto não seria, apesar de tudo, de molde a alterar muito as coisas. Levaria a que o PPE e os socialistas, sozinhos, não tivessem a maioria absoluta e que tivesse de haver uma aliança de liberais, macronistas, PPE, socialistas e porventura Verdes para encontrar soluções, de resto como está a acontecer em muitos países. Veja o tempo que levou a formar os governos na Suécia, Alemanha e Espanha. Pode acontecer que, depois das eleições, tenhamos também um compasso de espera.

Será preciso um candidato de consenso.
Vai haver aqui uma demora maior. Uma terceira linha que queria sublinhar: não é necessariamente negativo que tenhamos na Europa um bloco anti-integração e um bloco claramente pró-integração. Na história de todas as federações ou experiências de integração, elas só deram passos quando havia um partido pró-integração e um partido anti-integração. Até agora, o que tínhamos eram extremos residuais e uma espécie de consenso mole.

A História está sempre a demonstrar-nos que as coisas podem correr bem ou pode correr muito mal. O “Brexit” é um bom exemplo: tudo parece correr mal e, no entanto, ninguém pára para pensar. Esta entrada do anti-semitismo na cena política não lhe parece perturbadora?
Para ser sincero, enquanto a hostilidade aos muçulmanos não me surpreende nada, com a jihad e o terrorismo e, para quem está em cidades europeias, uma certa vontade de chocar da parte deles. O anti-semitismo é uma falha de previsão minha. Total. Mesmo quando apareceu aquela polémica no Labour, nem compreendia bem do que estavam a falar. Tive de ir inteirar-me. Estamos a ver agora no caso dos gilets jaunes, já estávamos a ver na retórica dos Estados do Leste, onde usam muito uma linguagem anti-semita. Isto vale para a Polónia, Hungria, Roménia, República Checa. Na Eslováquia, Georges Soros é tão diabolizado como na Hungria.

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Por isso lhe perguntava se isto não é um sinal muito perturbador.
Há aqui um mal-estar quanto às identidades que é muito inquietante. E que não devemos menosprezar. Já quanto à questão dos muçulmanos, não devíamos menosprezar. Talvez devêssemos ter um pouco mais as religiões no espaço público, incluindo as cristãs, que é uma forma de integrarmos mais as outras. O laicismo exagerado, às vezes, é contraproducente.

Mas não no sentido da defesa da cristandade como diz Orbán.
Que é contrária ao próprio cristianismo. É a cristandade como política, que o cristianismo não é. Não podemos regressar a coisas que tínhamos completamente ultrapassado.

E estávamos convencidos que foramos totalmente vacinados contra elas.
Fui apanhado de surpresa pelo grau de relevância que este anti-semitismo adquiriu. Se fosse uma questão episódica? Mas hoje vemos que há qualquer coisa de sistémico. É uma coisa que julguei que não ia ver na minha vida.

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