Como o Brasil tem que ver connosco

Bolsonaro, de quem quase nunca se ouvira falar, emergiu como homem providencial para responder com a proclamação dos mais primários slogans ao caos social brasileiro.

Ainda há poucas semanas, o risco de Bolsonaro ganhar as presidenciais brasileiras parecia uma ameaça ainda longínqua, apesar de ele surgir como o líder das intenções de voto na primeira volta das eleições que hoje decorre. No entanto, desde que foi agredido por um desequilibrado no decorrer da campanha, a aura de mártir serviu-lhe como rampa de lançamento para o triunfo final, poupando-o aos debates com os outros candidatos, enquanto recolhia os apoios das igrejas evangélicas, dos proprietários rurais e dos grandes empresários. Quase um clássico, se nos lembrarmos de cenários equivalentes no mundo dos anos 1930 e o respectivo background de recessão económica e instabilidade social.

Agora, a confirmar-se o que já se afigura como quase inevitável, aquele que fora durante quase três décadas um obscuro deputado nostálgico da ditadura militar poderá inscrever o seu nome na crista da onda populista que vem submergindo o mundo de hoje, irmão gémeo do filipino Duterte e variação extremista do americano Trump, do russo Putin, do turco Erdogan, dos europeus Salvini ou Orbán, entre outros expoentes de uma tendência em curso acelerado.

Para além das suas conexões com outros casos, o caso brasileiro é particularmente ilustrativo de todo um processo que conduziu à promiscuidade e aos laços de corrupção entre as elites políticas e económicas, para não falar do correspondente abuso de poder dos meios judiciais, interferindo directamente na presente campanha eleitoral. Mas o mais chocante foi, sem dúvida, a vertiginosa degenerescência da esquerda brasileira encarnada pelo PT e Lula da Silva, desde a esperança que representou para os excluídos da sociedade até ficar refém das malhas de um sistema de clientelismo político que asfixiava a generalidade dos seus representantes, incapazes de reformar estruturalmente a arquitectura do poder, enquanto o Brasil enfrentava uma espiral de insegurança e criminalidade sem precedentes. Ou seja, Bolsonaro, de quem quase nunca se ouvira falar durante as suas quase três décadas de deputado federal, emergiu como homem providencial para responder com a proclamação – acolhida calorosamente por uma população sem norte – dos mais primários slogans homicidas, xenófobos e homofóbicos ao caos social brasileiro.

Essa aparição do homem providencial vindo de parte nenhuma – ou que se mantivera eclipsado durante anos sem fim – é também um clássico dos fenómenos populistas e fascistas mas que ganha uma expressão perturbadora num país tão vasto, populoso e influente como o Brasil. A extrema polarização da sociedade brasileira, entre o fantasma de Lula – representado por Haddad – e o fantasma vingativo e "purificador" de que Bolsonaro é o rosto, constitui um dos sinais maiores da catástrofe que ameaça o nosso "país-irmão" e logo, por trágica ironia, o "país do futuro" antecipado por Stefan Zweig.

Mas, para além das especificidades explosivas que o caracterizam – e remetem para outras situações típicas do terceiro-mundo, como as Filipinas de Duterte –, o caso brasileiro inscreve-se também num quadro marcado pelas incidências mais gravosas da globalização económica e a crise financeira de 2008. Um quadro que, designadamente nos Estados Unidos e na Europa, tem sido ilustrado pela tecnocratização progressiva de um poder político fechado sobre si mesmo e de costas voltadas para as frustrações e ressentimentos das populações – que se sentem crescentemente excluídas dos mecanismos de representação política e ficam, por isso, mais vulneráveis à interiorização da maior de todas as ameaças: o medo. Medo da incerteza, medo da insegurança – traduzida através do medo do "outro", dos imigrantes –, medo do futuro. É essa conjugação dos medos levada ao paroxismo que ameaça conduzir o Brasil à tentação fascista.

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