Brasil vota de coração nas mãos, à espera de uma segunda volta entre Bolsonaro e Haddad

Poucas dúvidas restam de que o candidato de extrema-direita ganhará a primeira volta das presidenciais brasileiras e prepara apoios no Congresso, que também vai a votos. O PT aposta tudo na segunda volta, em que Haddad será apresentado como o campeão da democracia.

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É uma conversa entre jovens académicos, na Universidade de São Paulo. Transforma-se numa partilha de histórias e desabafos sobre os familiares que vão votar em Jair Bolsonaro. “A minha irmã foi vítima de bullying na empresa onde trabalhava, na hora do almoço, a toda a hora, para votar em Bolsonaro. Chamaram-lhe comunista radical. Agora ela não está a ir trabalhar e não quer voltar mais”, conta Vivian Nani Ayres, historiadora de 36 anos.

Juntaram-se ao fim do dia, para participar num debate sobre as eleições deste domingo. As histórias sucedem-se em rajada. Há relatos sobre familiares e amigos acossados no emprego pelos chefes para votarem no candidato de extrema-direita – que são comprovadas por denúncias nos media de empresários a tentaram coagir os seus trabalhadores a votarem em Bolsonaro –, com ameaças pouco subtis de puderem reconsiderar os seus investimentos, pondo em causa postos de trabalho.

“A minha família é muito antipetista. Tenho um primo que depois de Bolsonaro levar a facada diz que ele é que é um homem de verdade e vai votar nele. Quando explico as políticas económicas dele, não acreditam em mim. O Paulo Guedes [o prometido ministro da Economia e Finanças de Jair Bolsonaro] só sabe dizer que vai privatizar tudo”, conta Fernando Rodrigues Frias, de 40 anos, também historiador. “Aí o que eu digo é ‘vocês querem privatizar a vossa vida?’”, diz, prática, Vivian Ayres.

O favorito

Os brasileiros vão às urnas, numas eleições gerais decisivas, em que se joga o futuro da própria democracia, com Jair Bolsonaro na frente nas intenções de voto da primeira volta em 15 estados e no Distrito Federal de Brasília, e Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (esquerda), em sete. Ciro Gomes, candidato do Partido Democrático Trabalhista (centro-esquerda), lidera no Ceará, o seu estado, do qual já foi governador.

Fernando Haddad escreveu uma “carta ao povo brasileiro” no sábado, prometendo "fraternidade, tolerância, democracia e paz”, mas sem falar em vitória na primeira volta – diz que tudo indica que estará presente na segunda volta, agendada para 28 de Outubro.

Num ambiente de forte rejeição do Partido dos Trabalhadores de Lula da Silva, e nas vésperas da eleição, vários membros do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB, centro) abandonaram o seu próprio candidato, Geraldo Alckmin, assim como muitos elementos da ampla coligação – o chamado “centrão” – que apoiou a sua candidatura, que não conseguiu convencer os eleitores. Passam-se para Bolsonaro, que na cidade de São Paulo, o maior colégio eleitoral do Brasil, é rei e senhor.

Mas não se espere encontrar aqui o rosto dos candidatos espalhado em cartazes pela cidade – nesta metrópole gigante do Sul, as paredes são conquistadas pelos graffiti que com paisagens, desenhos e frases transformam em telas gigantescas e coloridas o betão armado, trazendo a vingança da natureza e da ironia à megacidade.

O que se pode esperar encontrar é um autocolante aqui, outro ali, bandeiras numa manifestação – como o comício falhado de Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores, na sexta-feira à tarde, a que o candidato não consegui chegar a tempo devido aos horário dos aviões e da chuva. Frustrou a militância que se tinha reunido na Praça Patriarca, junto à câmara municipal, e que depois se juntou em frente ao Teatro Municipal, após uma curta marcha, debaixo de chuva, ao ritmo de tambores, adaptando a música Eu quero é ser feliz na favela onde nasci. “Sim, sim, Lula é Haddad sim/Pelos direitos e liberdades vou logo avisando/voto 13/voto Haddad”, cantavam.

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Jair Bolsonaro, que concorreu apoiado por um pequeno partido sem grande representação, o Partido Social Liberal (PSL), conseguiu assegurar o apoio de várias bancadas parlamentares, que incluem múltiplos partidos; um grande número dos agricultores (a chamada "bancada do boi"), a "bancada evangélica" (ao garantir o apoio destas igrejas) e a "bancada da bala", que defende mão pesada na segurança pública. Apesar de não esperar eleger muitos senadores ou deputados nestas eleições, estes apoios podem garantir-lhe uma maioria para governar – se conseguir de facto ser eleito, na primeira volta, como é agora o objectivo da sua candidatura, ou num confronto final, na segunda, com Fernando Haddad.

Lula e Perón

Lincoln Secco, professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo, põe água nesta fervura. “Até agora em todas as eleições quem ficou em primeiro lugar na primeira volta ganhou. Mas esta é uma eleição atípica. Não é certo que Bolsonaro ganhe no segundo turno, porque ele tem também um índice de rejeição muito alto, o mais alto de todos os candidatos, porque desperta paixão e ódio”, afirma.

Mas ter um alto nível de rejeição não é um impedimento para se ser Presidente. Veja-se o caso de Lula da Silva. “Lula sempre teve uma alta rejeição e ganhou as eleições. E ganharia estas, se fosse candidato”, diz Secco. Mas será Haddad capaz de arcar com a herança de Lula, equiparar-se a ele? “Lula é único. Até disse no discurso de São Bernardo, antes de ser preso, que é uma ideia. E essa ideia agora vai ser interpretada de várias formas. Eu comparo muito ao peronismo, o fenómeno argentino. Só que no Brasil está no início.”

Em 1955, o golpe que derrubou Juan Domingo Perón do governo proibiu em seguida que se pronunciasse o nome de Perón. “O Lula está agora sendo proibido de dar entrevistas. No Brasil, há programas de televisão semanais com presidiários dando entrevistas, com líderes de facções criminosas. E o Lula não pode dar entrevistas. É uma coisa insólita. Acho que isso mostra que ninguém pode herdar o fenómeno que é Lula”, explica o historiador, autor de uma obra sobre a história do Partido dos Trabalhadores.

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No entanto, frisa, apesar de toda a loucura que se vive no Brasil, pró e contra Lula e pró e contra o PT, “as pessoas não pensam que o Lula é um mágico”. Sabem que o ex-Presidente representa um projecto político que não é monolítico. É um projecto “contraditório, com gente mais à direita e mais radical à esquerda". "Mas sabem que o Lula é a Bolsa Família, o salário mínimo... pelo que não votam só na pessoa. Por isso, o Haddad ou qualquer outro no lugar dele receberia uma boa parte dos votos do Lula.” E a escolha de Haddad para substituir Lula como candidato aconteceu por ser uma figura moderada, que poderia diminuir a rejeição ao PT no Sudeste do Brasil.

Polarização assimétrica

Só que esse efeito desejado não se concretizou, pelo menos na primeira volta. O discurso da polarização, sublinha Licoln Secco, está viciado. “A polarização é assimétrica, não é dos dois lados.” É do lado da extrema-direita, da candidatura de Jair Bolsonaro, e o candidato do PT ressente-se. “Mas na segunda volta [os restantes partidos] vão ter de se decidir entre um candidato muito radical à direita e uma figura como Haddad, que não é radical, por mais que possam dizer que o PT é”, diz Lincoln Secco.

“O candidato do PT é um intelectual moderado, professor aqui da Universidade de São Paulo. Eu classifico-o mais como um social-liberal. Dentro do PT, Haddad nunca pertenceu a correntes de esquerda, aliás irrita muito as correntes de esquerda. Para se ter uma ideia, ele declara que o seu maior feito foi conseguir uma nota de investimento para São Paulo que as agências de risco dão a governos locais. Esse é o grande feito dele. Uma pessoa de esquerda radical não falaria isso”, diz o historiador.

Se Haddad ganhar a Bolsonaro, terá uma grande legitimidade para governar, defende Secco. “Haverá grande oposição social, mas também vai ter uma grande legitimidade. Prenderam o Lula, o PT foi bastante atacado, em parte com razão, em parte não, mas enfim, decaiu muito na opinião pública por um tempo, e voltou com apoio popular. Seria a quinta vitória consecutiva do PT nas presidenciais.”

Entre os eleitores de Bolsonaro, que o candidato está a mobilizar para vigiar as urnas, no entanto, uma vitória de Haddad não é bem aceite. 

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“Se Haddad ganhar na segunda volta, o povo merece sofrer, porque é burro. Estou com 63 anos e penso assim”, diz Edinalva Francisca dos Santos, reformada mas que ainda trabalha, como copeira num edifício próximo da Praça da República, no centro de São Paulo. De farda, calças e casaquinho azul-escuro, uma rendinha branca na gola, está num momento de pausa do trabalho.

Outro eleitor, Luciano Henriques, diz o mesmo, ao aolhar para o comício do PT sem Haddad: “Melhor cair do cavalo com Bolsonaro do que roubarem seu cavalo”.

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