O bloco central potencia políticas de justiça “agressivas”

Manuel Soares toca gaita numa banda de magistrados e anda de bicicleta. Venceu as eleições para a associação sindical da classe. Com 54 anos e uma passagem pelo Kosovo, diz que o órgão de disciplina dos juízes tem exorbitado poderes.

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Rui Gaudêncio

A Associação Sindical de Juízes Portugueses vai nesta terça-feira ao Parlamento falar com os deputados sobre o pacto para a justiça, mas o seu novo líder não estará presente: diz que não faria sentido, uma vez que ainda não tomou posse. Manuel Ramos Soares tem esperanças de ainda conseguir renegociar o estatuto da classe com a ministra da Justiça, apesar de as negociações já terem encerrado, em particular no que diz respeito a aumentos salariais. Recorda as relações conturbadas que o Governo de Sócrates teve com a justiça e diz que as coisas melhoraram desde aí, mas acusa António Costa de ter sido o pai de uma lei que se tornou “o maior cancro da justiça comum”.

A única medida do pacto da justiça de que discorda é a fusão dos tribunais administrativos e fiscais com os tribunais comuns?

Não faz sentido discutir a arquitectura do sistema sem discutir primeiro o grande problema dos tribunais administrativos, que em Lisboa têm processos à espera de sentença há 12 anos. Sobre isto é que eu queria ver um compromisso. Agora introduzir mais ruído no sistema sem olharmos para o seu principal problema…

Há outra questão: o Estado transformou-se numa máquina de cobrar portagens de empresas privadas. Quem passou a cobrar as dívidas dos utentes às concessionárias das Scuts e das auto-estradas foi a máquina fiscal, que entupiu os tribunais administrativos. Houve uma juíza que me contou ter estado três horas para fazer uma sentença sobre uma dívida de portagem de 45 cêntimos. Depois não consegue fazer sentenças no valor de milhões de euros [por falta de tempo]. Isto não é racional.

Há mais alguma medida do pacto que lhe suscite críticas?
Não. No plano político há medidas importantes e positivas, como a redução de custas. Se uma pessoa precisa de ter 500 euros para resolver um litígio de 200 euros, isto é o Estado a dizer-lhe: “Não venhas para tribunal, para ti não há justiça." Mas o que me custa mais a entender é não estarem lá matérias como até onde pode ir a gestão dos tribunais sem interferir na independência dos juízes. Não havendo consenso sobre estas questões entre os profissionais do sector, vão ser os políticos a querer introduzir essas reformas. E como achamos que há um perigo no horizonte de políticas agressivas sobre a justiça, sobretudo se tivermos um Governo de bloco central ou com o apoio do bloco central, isso é preocupante.

Por outro lado, há matérias essenciais, como a independência dos juízes, que não estão lá.

Mas isso é uma questão para o pacto?
Não é uma questão profissional. Dou-lhe um exemplo: vi num jornal que o Conselho Superior da Magistratura (CSM) vai fazer um observatório da violência doméstica e de género. Vamos imaginar um cenário A: vai analisar em abstracto as decisões e procurar encontrar movimentos no sentido de ver se os direitos são respeitados, se a linguagem é adequada, uma coisa anónima que analisa quase no plano estatístico. Agora imagine o cenário B: vai criar uma task force para analisar os acórdãos, ver se estão bem, se estão mal, dizer “esta linguagem foi apropriada” ou “esta não”. Este cenário é inaceitável, viola a independência.

O observatório surge após o célebre acórdão de Neto Moura sobre as mulheres “adúlteras”. O CSM devia ter ficado ficar impávido e sereno?
Acho a crítica pública legítima e salutar. Mas vamos imaginar que o tal observatório pegava no acórdão e dizia: “Estas palavras podem ser escritas, estas não." Não pode ser uma entidade administrativa — e o conselho é uma entidade administrativa —, a fiscalizar uma decisão judicial e a dizer se ela está certa ou errada e quais são os limites. Se houver violação disciplinar o conselho pode actuar. Agora se disser “vamos andar com uma lupa a escrutinar todos os acórdãos desta matéria” — e nós podemos perguntar “mas porquê desta matéria e não de outra” — , e se o conselho daí pretender extrair consequências disciplinares, o que vai acontecer é que em futuras decisões os juízes não se vão sentir livres para decidir. Vão procurar adaptar a linguagem da decisão e a interpretação que fazem da lei àquilo que lhes parece ser a mensagem que o CSM transmite para ficarem, digamos assim, a resguardo de complicações disciplinares.

O que está a dizer é que a forma como o CSM tem vindo a actuar abre a porta à intromissão política.
Sim. No fundo é isso. O conselho é um órgão político, não é um tribunal, nem sequer tem uma maioria de juízes. Se se abrir uma porta que depois não se consiga fechar, para agora entrar uma leve brisa, mas depois entra uma ventania, podemos estar a minar os alicerces do sistema — que é a imunidade disciplinar relativamente às decisões.

Se abrirmos uma porta e dissermos: "O CSM pode sindicar disciplinarmente a forma como o tribunal aplicou a lei num determinado caso", se dissermos que neste caso pode, essa porta foi aberta e amanhã o conselho pode querer, no limite, condicionar os juízes na forma como aplicam a lei. Na Polónia, na Hungria, na Ucrânia, na Bulgária, na Sérvia... em todos os países onde o Estado passou a ser mais autoritário, e a condicionar a independência dos juízes, utilizou sempre os conselhos superiores da magistratura com membros designados pelo poder político, nunca foi directamente. Não devemos deixar que se abram brechas.

Mas tem de haver forma de acautelar...
Claro. Uma decisão que eu tome, se for errada, no plano da aplicação das regras do direito, no plano da interpretação da lei... ou, imagine, que sou uma pessoa racista e escrevo numa decisão que os negros são todos preguiçosos, aqui admito que possa ter relevância disciplinar, porque há a violação de um valor básico constitucional, o tribunal não pode ter estes preconceitos, a imparcialidade do tribunal é cumprir a Constituição também na norma em que temos que respeitar a igualdade entre as pessoas...

Vai abrir uma guerra com o Conselho Superior da Magistratura?
Não estamos interessados em guerra nenhuma.

Acha que tem exorbitado as suas funções?
Há momentos em que foi longe demais. Apropriou-se de competências que não são suas, de gestão dos processos, que são do juiz. Através dos presidentes dos tribunais, dos sistemas de monitorização dos objectivos. Neste momento, estamos a funcionar numa lógica de direcção-geral, piramidal, com ordens que vêm do topo e que é suposto chegarem à base, é uma lógica de funcionamento que os tribunais não conhecem. No novo estatuto dos juízes está previsto que desobedecer às instruções do Conselho Superior da Magistratura seja falta disciplinar. Não pode ser. Porque hoje pode dar uma instrução no âmbito dos seus poderes de gestão e amanhã sobre questões que não estão na sua competência.

Há outra norma muito estranha que prevê que os actuais membros do Conselho Superior da Magistratura fiquem mais um ano além do devido no cargo. Como o mandato passa a ser de quatro anos, prevê-se que essa regra se aplique a quem já lá está. Não aceitamos isso de maneira nenhuma: se veio do Governo é uma interferência abusiva na governação dos juízes; se foi o Conselho a propor é mau, porque quer dizer que os membros estão a querer prolongar-se artificialmente no lugar.

Acha preocupantes as posições que Rui Rio tem vindo a assumir sobre a justiça?
Todas as medidas de que ouvi falar até agora são preocupantes, porque parecem agressivas. No discurso do presidente do PSD ao longo do tempo há um acento tónico na eficiência do sistema, na ideia de que a justiça deve funcionar como uma empresa. E isso é uma ideia errada, porque a justiça tem especificidades.

Desde a última vez que esteve na associação sentiu que as tentações do poder político para controlar o poder judicial diminuíram?
Os governos de Sócrates tiveram um discurso muito agressivo para a justiça, o que criou um conflito institucional. A maior parte dessas políticas agressivas morreram no caminho. As políticas agressivas sobre a justiça diminuíram desde os governos de Sócrates. Os políticos só gostam do Estado de direito para os outros. Se o Estado de direito incomoda um cidadão anónimo, é bom. Se incomoda um procurador ou um juiz que pode ter feito alguma coisa errada, também. Mas se incomoda um político já não gostam tanto.

António Costa também já foi ministro da Justiça.
Foi o pai simbólico da lei das execuções, que já foi aprovada por Celeste Cardona e é o maior cancro da justiça comum. Mas a culpa não é só dele, foi uma das poucas leis estruturais da justiça aprovadas por unanimidade no Parlamento.

Um cancro porquê?
Porque no fundo privatizou a cobrança de dívidas nos tribunais, entregando esta função aos solicitadores, que já não respondem perante o juiz. Que no fundo perdeu o controlo do processo. As decisões só são tomadas [por um] juiz em certas situações.

Quando fala em políticos incomodados pela justiça lembramo-nos de José Sócrates.
Não só. Nos últimos anos houve maior autonomia do Ministério Público e maior capacidade de investigar os crimes. Mas o incómodo de um conjunto de pessoas relativamente ao Estado de direito persiste. Continuam a existir discursos que até falam em cabalas. Os políticos usam muitas vezes de forma crítica a expressão: “À política o que é da política e à justiça o que é da justiça."

Dizendo que a justiça está a meter o nariz onde não deve?
Sim. Antevemos que um Governo com o apoio dos dois principais partidos pode ter mais capacidade de introduzir medidas negativas na justiça no que à independência dos tribunais diz respeito, e isso preocupa-nos. Faz parte das regras da ciência política: deixa de haver fiscalização.

Claro que nunca vai ser feita uma lei a dizer que um juiz antes de condenar alguém tem de perguntar ao ministro. O que se faz é funcionalizar os juízes e introduzir medidas de controlo administrativo através dos conselhos [superiores da magistratura e dos tribunais administrativos e fiscais]. Os conselhos podem ser mais permeáveis a medidas políticas do que os juízes. Ou criando medidas mais duras de responsabilização dos juízes, que os façam temer que uma decisão sua suscite uma acção judicial de responsabilidade civil e respectiva indemnização. E aí eles passam a decidir em função do que é mais confortável para a sua vida pessoal. Quando trabalhei no Kosovo conheci muitos juízes que não tomavam decisões sem averiguarem primeiro o que pensavam os seus conselhos superiores.

Há uma proletarização dos juízes?
Uma funcionalização. E devo dizer que conheço bem os juízes mais velhos e os mais novos. Os mais velhos têm outra carapaça, apareceram num sistema em que os valores da independência e da autonomia eram muito vincados e, portanto, não aceitam ordens e interferências e reagem. Os mais novos não. Os juízes têm de sair do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) cientes do que é a independência. Não podemos ter juízes a sair do CEJ dispostos a aceitar as ordens dos juízes presidentes. Quem entra assim no sistema, hierarquizado, facilmente se adapta a ele e nós, daqui a uns anos, facilmente podemos ter um conjunto de juízes a decidir já os casos mais complexos, de pessoas mais relevantes, com essa outra estrutura mental.

O que acha de certas matérias em relação às quais não se chegou a acordo. A delação premiada, o enriquecimento ilícito...
Em relação à delação premiada não tenho opinião. Relativamente ao enriquecimento ilícito, essa norma já claudicou. Não vale a pena bater nessa tecla, temos de respeitar as decisões do Constitucional. Mas também não é adequado dizer que não há um problema, porque há um problema. Então faça-se a norma de outra maneira.

Já tem havido algumas tentativas de se fazer um bocadinho diferente e que é não punir o enriquecimento ilícito com base na presunção de que o enriquecimento é ilegal, mas procurar ir através da via da declaração dos rendimentos. Imagine: se eu fui político uns anos, descobre-se que tenho um milhão de euros no nome de um primo. O MP consegue provar que aquele dinheiro que está no nome de outra pessoa é meu. Eu não declarei esse dinheiro. Portanto eu sou punido não por se presumir que esse dinheiro foi adquirido de forma ilícita mas por ter violado a obrigação de o declarar enquanto era governante.

Isso actualmente não é possível?
Não. E, portanto, conseguia aqui punir o enriquecimento que indiciariamente é ilícito não por ele ser ilícito mas pelo crime de desobediência, ou por um crime mais agravado, porque enquanto governante não declarei. Vamos punir o facto de não ter declarado. A obrigação de declaração já existe só que as consequências dela são muito incipientes.

Isso exige uma alteração legislativa?
Sim. Tinha que ser um novo tipo do processo penal. Não é muito longe do que tentou fazer a ministra Paula Teixeira da Cruz, de uma forma muito atabalhoada. E portanto aquilo não passou.

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