A NATO é uma aliança obsoleta?

No mundo turbulento e perigoso do século XXI são os europeus quem tem mais a perder se não tiverem uma alternativa credível, dentro ou fora da NATO.

1. A frase é atribuída a Hastings Lionel Ismay, um dos principais generais de Churchill na II Guerra Mundial e o primeiro Secretário-Geral da NATO (North Atlantic Treaty Organization) nos anos 1950. O objectivo desta era simples: to keep the Russians out, the Americans in, and the Germans down / "manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães em baixo". Tornou-se um dito clássico nos estudos sobre a segurança euro-atlântica do século XX. Mas a NATO, tal como outras organizações criadas no pós-II Guerra Mundial — Nações Unidas, Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, Comunidades Europeias, etc. —, enfrenta problemas de adaptação ao mundo do século XXI. Uma aliança político-militar tende a ser sólida em certas circunstâncias. Noutras, a caminhar para a irrelevância ou desagregação, a um ritmo lento ou rápido. Normalmente uma aliança é sólida quando os Estados que a integram percepcionam as mesmas ameaças à sua segurança — no limite um mesmo inimigo comum —, e sentem-se, dada a gravidade da ameaça e/ou poder do inimigo, incapazes de a enfrentar individualmente ou em coligações mais limitadas e ocasionais. Mas uma percepção comum de um inimigo, ou da origem das ameaças, é uma realidade que cada vez menos temos hoje na Aliança Atlântica, apesar da aparência superficial de unidade.

2. A conhecida doutrina da Guerra-Fria da NATO, de containment (contenção) da União Soviética, era herdeira da rivalidade anglo-russa do século XIX. Os britânicos, enquanto potência global da época, colidiam com a Rússia na ambição de domínio do Sudestes europeu / Médio Oriente. A estratégia clássica britânica era apoiar o Império Otomano contra as investidas russas. O mesmo acontecia na Ásia Central, na difusa e longa fronteira Norte da Índia, nos territórios da Pérsia (Irão) e Afeganistão, onde decorria o “grande jogo”. O nacionalismo expansionista britânico que se manifestou emotivamente no contexto da guerra russo-turca de 1877-1878 — que ficou conhecido como “jingoísmo” —, mostra o enraizamento do sentimento anti-russo. Após a II Guerra Mundial, a estratégia e lógica de alianças britânicas no mundo do passado foi absorvida e readaptada pelos EUA aos seus interesses contemporâneos. Devido à Guerra-Fria do século XX, a visão da Rússia como inimigo da Europa/Ocidente e do Império Otomano/Turquia como aliado, foi algo que passou dos interesses imperiais/coloniais britânicos do século XIX, para os interesses da actual superpotência global, os EUA.

3. No passado da Guerra-Fria tudo era mais linear. A generalidade dos membros europeus da NATO, da Turquia a Portugal, viam a União Soviética como uma real ou potencial ameaça poderosa à sua segurança. Sentiam, também, que sem o peso militar dos EUA seriam frágeis. Hoje a União Soviética não existe, a Guerra-Fria acabou e a Rússia — apesar da anexação da Crimeia, da guerra no Leste da Ucrânia e da intervenção militar na Síria —, não tem o poder nem a lógica ideológica da era soviética. Por outro lado, várias situações colocam a NATO sob tensão, quer do lado europeu, quer do lado norte-americano. Primeiro, não há a uma percepção sólida e generalizada de inimigos comuns. A Rússia é vista como ameaçadora a Leste (pelos Estados Bálticos e Polónia, por exemplo), ou pelo Reino Unido, por razões geopolíticas e de contenciosos do passado já apontadas. No entanto, a Sul (na Grécia e Itália, ou em Espanha e Portugal), normalmente nenhum dos Estados a percepciona como uma ameaça directa, nem há qualquer contencioso bilateral. A Grécia até sente proximidade histórica e política com a Rússia, como se viu na altura mais crítica da negociação da dívida com a União Europeia. O problema é ainda mais agudo com a Turquia: quem vê esta como inimigo? Convergem os seus interesses geopolíticos no Médio Oriente com o resto dos membros da NATO, ou é a Turquia é um outsider, com os seus próprios objectivos estratégicos, que tenta manipulá-la em seu proveito?

4. O problema também está nos EUA devido às suas mutações internas e à redefinição das suas prioridades estratégicas globais. Independentemente de quem ocupar futuramente o poder, a Europa e o Atlântico são, cada vez menos, a sua prioridade, tal como esta existia no mundo herdado da II Guerra Mundial. O encerramento da Base das Lajes nos Açores — já há muito tempo em decadência de interesse estratégico — evidencia, inequivocamente, a alteração dos seus interesses para outras áreas geográficas. Por razões simultaneamente demográficas, económicas, comerciais e militares, a Ásia-Pacífico é o crescente foco de atenção de uma potência global como os EUA. É daí que virá a disputa mais forte à sua hegemonia mundial — o caso mais óbvio de um crescente desafio a essa supremacia é o da China —, não da Velha Europa. Nem mesmo o Médio Oriente mantém o elevadíssimo grau de interesse estratégico que já teve. Embora continuando, naturalmente, a ser importante nas rotas mundiais do abastecimento energético, a inovação e aperfeiçoamento das técnicas de extracção da última década relançaram a exploração de petróleo e gás natural na América do Norte. Se as projecções se confirmarem, os EUA poderão estar a caminho da auto-suficiência em matéria de energia, embora com custos de extracção mais elevados que no Médio Oriente e altos custos ambientais no seu próprio território. Em qualquer caso, isso dá-lhes uma renovada autonomia estratégica e maior liberdade de acção.

5. Por razões históricas e políticas, a lógica da NATO foi moldada essencialmente pelos já referidos interesses das potências anglo-saxónicas. Como resultado, a organização pode continuar a servir os britânicos de saída da União Europeia — e, apesar da reorientação para a Ásia-Pacífico, também os norte-americanos —, mas não responde a uma parte significativa dos interesses europeus. O problema é visível nos conflitos do Sul do Mediterrâneo e Médio Oriente. As guerras do Iraque e da Síria e a intervenção militar na Líbia estão a ser desastrosas para a União Europeia. Originaram vagas de refugiados em massa e alimentaram o islamismo-jihadista e atentados terroristas do Daesh e outros grupos. Para os EUA, apesar de tudo, são problemas geridos a milhares de quilómetros de distância, sem consequências directas sobre o seu território. Para a União Europeia são situações graves à porta, que se projectam no seu interior, com pesadas consequências directas ou indirectas. Mas a questão não é apenas de constatar as limitações da NATO para a segurança a nível geral europeu, ou da inadequação da sua resposta, excessivamente impregnada do interesse norte-americano como se tem tornado evidente. A questão é também a de saber quais são as alternativas. O problema óbvio é que não existe uma União Europeia coerente e integrada a nível político de segurança. Nem existe vontade, ou possibilidade real, de aumentar o nível de despesa militar sem cortar noutras despesas públicas, especialmente nas despesas sociais. Mais isso teria um forte impacto negativo no bem-estar sociedades europeias. Como resolver este conflito de objectivos políticos? Não há nenhuma resposta fácil.

6. Pela sua própria natureza, as alianças militares são conservadoras. São caracterizadas por uma resistência à mudança. Normalmente um Estado só abandona uma aliança em situações de profunda ruptura política interna ou externa. Com o final da Guerra-Fria foi isso que aconteceu com o Pacto de Varsóvia. Sair de uma aliança militar e/ou mudar para outra é uma das decisões de política externa mais críticas de um Estado. Na história europeia recente ocorreu a partir dos finais dos anos 1990, com o alargamento da organização aos antigos aliados da União Soviética. Há múltiplas implicações, que vão muito além dos aliados ou inimigos concretos e das solidariedades e inimizades políticas. Ocorrem ao nível da cultura das forças armadas, dos planos estratégicos, dos equipamentos militares, das peças de substituição, etc. O caso português mostra bem essa situação, com a longevidade secular da aliança luso-britânica, a qual teve continuidade na NATO e nos EUA. As alianças militares tendem, por isso, a perpetuar-se no tempo, mesmo quando respondem cada vez menos aos interesses e problemas de segurança dos seus membros. É isso que está a acontecer à NATO. Resta saber se conseguirá reinventar-se, ou se está num caminho sem retorno de se tornar obsoleta. Importa deixar claro: no mundo turbulento e perigoso do século XXI são os europeus quem tem mais a perder se não tiverem uma alternativa credível, dentro ou fora da NATO.

Investigador

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